A Bem-aventurada Virgem Maria e a busca da Unidade
Uma visão da Reforma Protestante
1. Introdução
Com temor e tremor aceitei o convite para fazer algumas colocações
sobre dificuldades e perspectivas no diálogo entre católicos
e protestantes sobre Maria. Encorajou-me o facto de já estar sendo possível
sair da contraposição áspera e dura para uma reflexão
franca e aberta sobre Maria.
Em muitos países esta reflexão ainda não encontrou o devido
espaço no mundo ecuménico. Outros temas têm merecido prioridade.
A nível internacional já se tem feito alguns avanços.
Menciono os congressos mariológicos; os diálogos bilaterais católico-luterano
e católico-anglicano.
Procuro abarcar as posições principais da Reforma quanto à veneração
de Maria e considerar a apropriação das mesmas pelas Igrejas
herdeiras. Mesmo procurando abrangência confessional, minha abordagem
do tema necessariamente terá um acento luterano.
Por fim me resta dizer que o texto que aqui apresento quer ser entendido como
um primeiro ensaio.
2. Maria no Novo Testamento
O Novo Testamento é um vigoroso e polifónico testemunho acerca
do agir libertador de Deus em e através de Jesus Cristo, seu Filho.
Trata-se do agir gracioso de Deus. Ele vem ao encontro ao ser humano sem que
este o mereça. Deus torna-se bem próximo aos que dele se haviam
distanciado.
Esta opção radical e irrevogável de Deus pela salvação
do mundo é parte essencial na vida e proclamação de Jesus.
Para Ele o reino de Deus é caracterizado pelo poder do amor. Por isso
Jesus anuncia o amor como pertencente a essência de Deus e ele próprio
se deixa determinar por este amor, até à morte. Assim se dá a
vitória da Vida. Jesus é o lugar onde Deus se dá a conhecer.
Ele próprio diz, conforme o evangelista João quem me viu, viu
o Pai (Jo. 14, 9). E Jesus é um dado concreto na história que
pode ser datado e localizado. É neste sentido que tradição
bem antiga, anterior aos evangelhos, insiste na indicação concreta
quanto à humanidade de Jesus e coloca de maneira lapidar: nascido de
mulher (Gl. 4, 4).
Ao mesmo tempo essa é a primeira menção do Novo Testamento
sobre Maria. Não se destaca, porém, nenhum papel especial de
Maria. O acento é cristológico. Na pessoa de Jesus de Nazaré -
Deus veio ao mundo, ou como o expressa o evangelista João: o verbo se
fez carne e habitou entre nós e nós vimos a sua glória;
glória essa que, Filho único cheio de graça e de verdade,
ele tem da parte do Pai (Jo. 1, 14). É neste contexto da história
da salvação que as afirmações feitas a respeito
de Maria, recebem seu mais profundo significado.
No início deste maravilhoso caminho da encarnação do verbo
está à disposição de Maria de ser serva do Senhor!
Faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc. 1, 38). Conforme os evangelhos
de Mateus, Marcos e Lucas a mãe de Jesus é Maria. Ela estava
casada com um carpinteiro de nome José (Mt. 13, 55; Jo. 6, 42). O evangelista
Marcos (Mc. 6, 3) menciona quatro irmãos de Jesus que o pai da Igreja,
São Jerónimo passa a entender como primos. Os evangelhos nos
contam que a proclamação de Jesus, inicialmente, causava alguma
dificuldade para a sua mãe. (Mc. 3, 31-35, Mt. 12, 46-50, Lc. 8, 19-21).
Nas célebres narrativas do nascimento de Jesus, Mateus e Lucas destacam
a concepção através do Espírito Santo. O anjo anuncia:
O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo
te cobrirá com a sua sombra; e por isso aquele que vai nascer será santo
e será chamado Filho de Deus. (Lc. 1, 35). A este anúncio, Maria
submete-se em obediência de fé. Esta fé é então
exaltada por Isabel com as palavras: Bendita aquela que creu o que lhe foi
dito da parte do Senhor se cumprirá. (Lc. 1, 45)
Com tudo isso, ela não se vangloria. Não se exalta a si mesma.
Em vez disso ela exalta o Senhor. Ela não tem nada do que se gloriar.
E aí estamos diante de uma das mais belas paginas do Novo Testamento,
o Magnificat (Lc. 1, 46-55), Minha alma exalta o Senhor e meu espírito
se encheu de júbilo por causa de Deus, meu Salvador, porque ele pôs
os olhos sobre a sua humilde serva... Ela, essa humilde serva, é bem
aventurada.
De facto tem razão: quem vê nela o exemplo daqueles que serão
chamados de bem aventurados pelo próprio Jesus (Mt. 5, 3). E ainda nos
vem a memória as proféticas palavras que confessam Deus como
Senhor da história. Ele interveio com toda a força do seu braço;
dispersou os homens de pensamento orgulhoso; precipitou os poderosos de seus
tronos e exaltou os humildes; aos famintos ele cobriu de bens e os ricos, despediu-os
de mãos vazias. (Lc. 1, 51-53)
Maria é o próprio exemplo para esse agir de Deus. Ele inverte
os valores. Exalta o que nada é. Esse é o seu jeito: ouvir o
grito dos excluídos e colocar-se em defesa daqueles que nada tem a oferecer.
A eles manifesta o poder do amor. Os que norteiam sua vida pelo amor ao poder,
Ele despede vazios! É necessário mencionar ainda que as narrativas
bíblicas do nascimento são marcadas pela pobreza da manjedoura.
Já temos aqui uma indicação de que o caminho de Jesus
haveria de levá-lo à cruz. E lá estará Maria, ao
pé da cruz. O evangelista João descreve a cena: Vendo assim a
sua mãe, e perto dela o discípulo que ele amava, Jesus disse à sua
mãe: Mulher, eis ai o teu filho. A seguir, disse ao discípulo:
Eis ai tua mãe. E desde aquela hora o discípulo a recebeu em
sua casa. (Jo. 19, 26-27)
E, por fim, temos ainda a concepção bíblica que permite
a comparação de Maria com a Igreja. Conforme o Apocalipse de
João, capitulo 12, um grande sinal aparece no céu, é uma
mulher vestida de sol, que gera o salvador do mundo. Nem o grande dragão,
vermelho-afogueado pode impedir da vitória da salvação!
As Igrejas da Reforma sempre insistiram na centralidade da Sagrada Escritura.
Assim elas assumem todo esse rico testemunho a respeito de Maria. Temos que
reafirmar a partir daí: Maria não é só católica,
ela é também evangélica, anglicana e ortodoxa.
3. Confissões da Fé Comum
A fé cristã vivenciada em distintas culturas e contextos necessita
formulação comum. A fé no único Senhor encontrou
forma em credos que uniam os cristãos não obstante as diferenças
de cultura, classe e raça.
Surgiram formulações como o Credo Apostólico e o Credo
Niceno Constantinopolitano. Ambos gozam de ampla aceitação entre
as Igrejas. O Credo de Nicéia e de Constantinopla (381) - até hoje
- é percebido como expressão apropriada dos fundamentos da fé apostólica.
Sua acolhida foi mais universal do que a de qualquer outra confissão
formulada. Pois bem, esses credos são aceitos por praticamente todas
as igrejas. São herança comum.
3.1. Nascido da Virgem Maria
Também os cristãos evangélicos confessam concebido do
Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria. E com o Niceno Constantinopolitano
afirmam: Cremos em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho Unigénito
de Deus, gerado do Pai antes de todos os séculos, (Deus de Deus), Luz
de Luz, Verdadeiro Deus de Verdadeiro Deus, gerado e não feito, da mesma
substância que o Pai, por meio do qual todas as coisas vieram a ser;
o qual, por nós, os homens, e pela nossa salvação, desceu
dos céus e se encarnou do Espírito Santo e da Virgem Maria e
se fez homem e foi por nós crucificado sob Pôncio Pilatos e padeceu
e foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e subiu
aos céus e está sentado a direita do Pai e virá de novo,
com glória a julgar vivos e mortos; e o seu reino não haverá fim.
Destaca-se a humanidade de Jesus. É ai que se rompe a distância
entre Deus e os seres humanos. Verdadeiro homem, mas também verdadeiro
Deus, pois concebido pelo Espírito Santo. Não se destaca, porém,
qualquer mérito próprio de Maria.
A referência à virgindade de Maria, muito longe de estatuir um
valor próprio à Maria, justamente o desfaz. Maria não
tem mérito algum, não pode fazer nada, mas foi simplesmente agraciada.
Ela é simplesmente recebedora. Como tal é condizente relembrá-la,
mas sempre apenas como aquela que foi escolhida por Deus para dar à luz
seu filho. A referência à virgindade de Maria, antes de ser a
descrição de um facto biológico, é expressão
da confissão de que aquele Jesus, tão humano, nascido de Maria, é o
enviado de Deus, sim: é o próprio Deus.
Que Deus assumiu forma humana, que o Verbo se fez carne é, no fundo,
um mistério. Este mistério é expresso de maneira magistral
nas narrativas bíblicas do nascimento de Jesus e também nos credos
que mencionamos. Modificando uma expressão de Ulrich Wilckens eu diria:
o singular nascimento é sinal para o nascido singular.
3.2. Mãe de Deus
O Terceiro Concilio Ecuménico, realizado em Éfeso no ano de 431
afirma: Quem não confessa que Emanuel é verdadeiramente Deus
e a Santa Virgem, por isso, Mãe de Deus (...) seja excomungado. É uma
formulação cristológica, sem dúvida, muito forte.
Ela é retomada, em 451, no Quarto Concilio Ecuménico, em Calcedónia.
Este título THEOTOKOS, Mãe de Deus, praticamente não é contestado.
As Igrejas que reconhecem os Concílios Ecuménicos, reconhecem
com isso também o título Mãe de Deus e o respeitam. Talvez
o Theotokos possa vir a ser elemento importante na discussão ecuménica
sobre Maria. Permanece a pergunta: Por que não aceitar igualmente a
formulação de Nestório que propunha o Christotokos? Aliás,
talvez devêssemos estudar as formulações destes credos
ainda mais a partir do histórico do seu surgimento do que aqui nos é possível
fazer. De qualquer modo, a designação Mãe de Deus é feita
com clara intenção cristológica.
4. A Reforma e a veneração dos Santos
Se em tudo que foi exposto acima identificamos herança comum, porque
tanta dificuldade quanto à veneração de Maria, nas Igrejas
da Reforma? Parece-me que a questão deve ser examinada no contexto mais
amplo da invocação dos santos.
Na piedade medieval era prática corrente depositar grande esperança
no poder de intercessão dos santos. Havia os patronos da região
ou de determinada corporação. Havia santos especialistas em livrar
de perigos específicos. Entendia-se que estes santos, como intermediários,
estariam bem mais próximos dos seres humanos. Pedia-se, por isso, a
sua intervenção junto a Deus. O povo era, inclusive, encorajado
neste sentido. Era um verdadeiro florescimento dessa devoção
aos santos como intercessores e milagreiros.
Os Reformadores viam ai Deus relegado a um plano secundário. Sabemos
que Lutero, durante sua vida, estava sempre preocupado em deixar Deus ser Deus.
Todo o seu trabalho era, por assim dizer, uma interpretação do
primeiro Mandamento, ou seja, do Senhorio incondicional de Deus. No «Catecismo
Maior», Lutero volta-se contra a prática de buscar socorro junto
aos santos. Via nisso uma usurpação do lugar que cabe exclusivamente
a Deus. Diz ele: a idolatria (...) não consiste unicamente em erigir
uma figura qualquer e se prostrar diante dela, mas sim, antes de mais nada,
consiste em distrair-se, olhando para o lado, ao invés de olhar para
Deus.
Exclusivamente em Jesus Cristo, o grande advogado, diante de quem se dobra
todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra
(Fp. 2, 10) temos quem defenda a nossa causa. Na confissão de Augsburgo
(1530) isso tudo é assim resumido: A Escritura, porém, não
ensina que invoquemos os santos ou peçamos auxílio deles, porque
nos propõe um só, Cristo, como mediador, propiciador, sumo sacerdote
e intercessor. É a ele que se deve invocar e ele prometeu que haveria
de ouvir as nossas preces. E esse culto aprova-o muitíssimo, a saber,
que seja invocado em todas as aflições. (1 Jo. 2, 1): 'Se alguém
pecar, temos Advogado junto a Deus', etc...
Também Zwínglio ocupa-se extensivamente com esse assunto. Julga
importante que os fieis intercedam uns pelos outros, mas volta-se com veemência
contra a invocação dos santos. Cristo é único Mediador
entre Deus e os homens. De forma alguma há necessidade da mediação
dos santos. Os méritos dos santos não nos podem ajudar. Na concepção
de Zwínglio seria ofensa a Deus pensar que ele precisa ser influenciado
para que nos venha a ser favorável. Já não nos disse Ele
que é nosso Pai? Podemos buscar inspiração na coragem
e na fé dos santos, isso sim, mas não nos dirigirmos a eles em
oração. Nem Maria deseja ser invocada. Ela nos diria: Honrai
a Deus como eu o honrei com a fé, a obediência e a paciência
na afeição; que minha vida vos seja uma prova de que todos aqueles
que pertencem a Deus hão de passar por duras provações
na terra. Quando não sofri eu mesma? Se, pois, a mãe do Filho
conheceu a bênção do sofrimento (Hartseligkeit), deveis
conhecê-la também. Suportareis mais facilmente vossas provações
quando vos lembrardes de que eu já as venci.
Igualmente Calvino foi bastante explicito quanto ao assunto da invocação
dos santos. Para ele importa, manter-se nos limites do que nos foi revelado.
Volta-se contra todo tipo de especulação. Em parte nenhuma a
Sagrada Escritura diz algo sobre a invocação dos santos. Tudo
isso fica bem explicito na Confissão Helvetica, cap. V: Ensinamos que
somente o verdadeiro Deus deve ser adorado e cultuado. Esta honra não
concedemos a nenhum outro, segundo o mandamento do Senhor: 'Ao Senhor teu Deus
adorarás, e só a ele darás culto' (Mt. 4, 10). Somente
Deus deve ser invocado e isso pela exclusiva mediação de Cristo.
Em todas as crises e provações de nossa vida invocamos somente
a ele e isso pela mediação de Jesus Cristo, nosso único
mediador e intercessor. Eis o que nos é claramente ordenado: 'Invoca-me
no dia da angústia: eu te livrarei, e tu me glorificarás' (Sl.
50, 15). Temos uma promessa generosíssima do Senhor, que disse: 'Se
pedirdes alguma coisa ao Pai, Ele vo-la concederá em meu nome' (Jo.
16, 23), e: 'Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e
eu vos aliviarei' (Mt. 11, 28).
E mais adiante se reafirma com todo vigor que os santos não devem ser
adorados, cultuados ou invocados. Por essa razão não adoramos,
nem cultuamos nem invocamos os santos dos céus, nem outros deuses, nem
os reconhecemos como nossos intercessores ou mediadores perante o Pai que está no
céu. Deus e Cristo, o Mediador, são-nos suficientes. Nem concedemos
a outros a honra que é devida somente a Deus e ao seu Filho, porque
ele claramente disse: 'A minha glória, pois, não a darei a outrem'
(Is. 42, 8). é porque São Pedro disse: 'Porque abaixo do céu
não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa
que sejamos salvos', a não ser o nome de Cristo (Act. 4, 12). Nele,
os que dão seu assentimento pela fé não buscam coisa alguma
além de Cristo.
Os reformadores são unânimes em se voltar contra a invocação
dos santos. Mas, é importante notar que, no fundo, há uma concepção
positiva dos santos. Numa lindíssima interpretação do
Magnificat (1521) Lutero não se cansa de ressaltar o quanto podemos
aprender em termos de espiritualidade, da oração de Maria. Aliás,
a primeira edição dessa obra no Brasil foi promovida pela Igreja
Católica Apostólica Romana. É um sinal visível
de ecumenismo.
A posição luterana conforme o artigo 21 da Confissão de
Ausburgo é de grande respeito aos santos: Do culto aos santos ensinam
que se pode lembrar a memória dos santos, a fim de lhes imitarmos a
fé e as boas obras - E ainda mais: o artigo que fala dos santos, encontra-se
na primeira parte da Confissão de Ausburgo, entre os artigos principais
da fé, e não na segunda parte que fala das divergências.
E expressamente se diz: Esta é, mais ou menos, a suma da doutrina entre
nós. Pode-se ver que nela nada existe que divirja das Escrituras, ou
da Igreja Romana, até onde nos é conhecida dos escritores. Assim
sendo, julgam duramente os que requerem sejam os nossos tidos por hereges.
A dissensão toda diz respeito a alguns poucos abusos, que se infiltraram
nas Igrejas sem autoridade certa. Temos ai, sem dúvida, indicadores
que nos podem ajudar no caminho do diálogo ecuménico.
5. Dois novos Dogmas Marianos: Imaculada Conceição e Assunção ao Céu
Surgem novos dogmas marianos. Entende-se que todos eles são desenvolvimento
das afirmações contidas no Novo Testamento e nas confissões
da Igreja antiga a respeito da concepção pelo Espírito
Santo e do nascimento virginal. O nascimento virginal já havia sido
ampliado no sentido de Maria «semper virgo». Um passo além
e então a afirmação da «Imaculada Conceição».
Em 1854 o Papa Pio IX proclama: por singular privilégio da graça
de Deus Todo-Poderoso, com vistas aos méritos de Jesus Cristo, salvador
do género humano, desde o primeiro instante da sua conceição,
foi preservada imune do labéu do pecado original... Maria é totalmente
sem pecado. Ela está livre de qualquer mancha do pecado original. Isto
para ouvidos protestantes soa como de difícil conciliação
com a Sagrada Escritura, pois são muito habituados com a teologia paulina
e, sobretudo, com a constatação em Rm. 3, 10: “Não
há justo, nem sequer um. Não há distinção,
pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” (v. 23). Tem-se
a impressão que, no fundo, Maria não fazia parte do género
humano.
Cem anos mais tarde, já no nosso século, surgiu o quarto dogma
mariano. Em 1950 o Papa Pio XII proclama a glorificação de Maria:
no fim de sua vida terrena, a imaculada Mãe de Deus e sempre Virgem
Maria foi levada com corpo e alma para a celeste glória.
Para as Igrejas da Reforma essa doutrina é estranha ao Santo Evangelho.
Ela espelha uma indevida glorificação da natureza humana. Maria é destacada
da comunhão dos santos, é elevada para a celeste glória
e colocada junto ao Filho. Desta forma ela é co-redentora e mediadora
de todas as graças.
Estes dois novos dogmas são realmente problemáticos e são
um empecilho para o diálogo ecuménico sobre o papel de Maria
na história da salvação. Ulrich Wilckens, renomado professor
de teologia evangélica, diz: Ambos os dogmas baseiam-se exclusivamente
em uma tradição constitutiva extra e pós-biblica. Isso
ainda pode passar como fundamentação de uma piedade mariana do
alvitre de cada um. Porém, ao elevá-los a dogma, o magistério
eclesiástico pôs-se acima da Sagrada Escritura e exerceu coacção
sobre as consciências. Com isso, o magistério impulsionou uma
piedade mariana que (...) obscurece a visão sobre Cristo, mediador único
entre Deus e o homem.
Na concepção evangélica Maria é exemplo do agir
gracioso de Deus. Como tal ilumina a existência cristã, mas não
a fundamenta. Ela é ilustração, mas jamais norma da fé.
6. O lugar de Maria na espiritualidade das Igrejas Evangélicas, hoje
É
difícil pintar um quatro preciso. A mesma igreja, em países e
culturas diversas, assume atitudes e práticas diferentes quanto ao cultivo
da memória de Maria. Mesmo no Brasil, há diferentes ênfases
nas diversas Igrejas. De modo geral, porém, pode-se dizer que as Igrejas
da Reforma assumiram as críticas feitas pelos reformadores quanto a
invocação dos santos.
Muitas vezes, porém, assumiram somente as críticas e deixaram
de perceber a valorização do exemplo dos santos que também
faz parte do pensamento da Reforma. Não se recorda os santos que nos
antecederam na fé, também são esquecidos os exemplos de
fé e os mártires de hoje. Mas o povo que ignora os exemplos verdadeiros
de seu passado, torna-se sem raízes, sem identidade. Não se respeita
o que se diz em Hebreus (13, 7): Lembrai-vos dos vossos guias que vos pregaram
a palavra de Deus, considerando atentamente a sua maneira de viver e imitando
a fé que tiveram. Em datas especiais são lembradas unicamente
as figuras dos próprios Reformadores.
Quanto a Maria, ela é mencionada quando se recita os credos (Apostólico
e Niceno) e na época de Natal. A Igreja Luterana tem belas canções
natalinas nas quais se destaca o nascimento virginal de Jesus. Eis alguns exemplos:
Menino lindo vos nasceu, Maria foi que à luz o deu;... (HPD, 16) ou
ainda: Louvado sejas, O Jesus! Resplandece o céu em luz. Da Virgem nasceu
em Belém; os anjos cantam: Cristo vem! Aleluia (HPD, 18). Mas a Igreja
Luterana não tem hinos mariológicos. Maria não aparece
no calendário litúrgico e no leccionário. Uma posição
especial, neste particular, ocupa a Igreja Anglicana. Luiz Caetano Grecco Teixeira,
teólogo anglicano, a meu pedido, escreveu um artigo com o título:
A Bem-Aventurada Virgem Maria no Anglicanismo. Basicamente passo a reproduzir
aqui, alguns pensamentos expressos neste seu artigo.
O Livro de Oração Comum da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil,
aprovado pelo Sínodo Geral em 1984, registra as seguintes festas marianas:
Anunciação (25 de Março); Visitação (31
de Maio); Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo
(15 de agosto) e Natividade da Bem-Aventurada Virgem Maria (8 de Setembro).
Todas as festas tem seus próprios ordinários para a Eucaristia.
No Hinário Episcopal, há mesmo um hino mariano.
Mas, Caetano esclarece: Embora o calendário e o leccionário incluam
festas marianas, não há culto mariano na Igreja Anglicana; o
culto anglicano é exclusivamente cristocêntrico e dirigido a Santíssima
Trindade. Maria não ocupa nenhum lugar de destaque na liturgia anglicana,
tampouco é invocada ou honrada nos altares. Maria é reverenciada
e reconhecida como Mãe de Deus e, como os demais Santos do calendário,
como testemunha do Cristo e referência para a vida dos cristãos.
Os próprios para as festas marianas estão centrados no Cristo, único
Senhor, único Mediador e único Intercessor diante do Pai. Não
se dirigem orações nem louvores à Virgem, como não
se dirigem orações aos demais Santos. Isso é praticamente
uma regra geral.
Podemos concluir que na Igreja Anglicana a Virgem Maria ocupa um lugar de destaque.
Mas de modo algum é entendida como mediadora da graça. e tida,
como nas demais Igrejas, herdeiras da Reforma como exemplo e modelo de fé,
mas não como advogada ou co-operadora na graça.
7. Pistas para o Diálogo Ecuménico
Parece-me que ainda há um longo caminho a percorrer no que toca a compreensão
do papel de Maria na história da salvação.
Todos concordamos que a Mãe de Jesus faz parte, de maneira inalienável,
da mensagem do nascimento do Filho de Deus. Em nenhuma época a Igreja
pode ignorar Maria, a mãe terrena do Salvador. Mesmo assim há discrepâncias
consideráveis de doutrina entre as Igrejas da Reforma e, especialmente,
entre elas e a Igreja Católica Apostólica Romana.
Mas os diálogos ecuménicos dos últimos anos tem abrandado
posições extremadas e criado um clima de respeito e confiança
que permite dialogar sobre temas ainda bastante controversos. A própria
abertura para o diálogo já é em si mesma, um gesto de
amor. Para finalizar, algumas indicações que poderão ajudar
na aproximação das igrejas no tocante a compreensão do
papel de Maria:
a. As Igrejas Protestantes devem conscientizar-se do seu crescente afastamento
da linha original da Reforma ao não darem o devido espaço para
a veneração (não invocação!) dos santos.
Teríamos que começar já pelo Novo Testamento. Por que
não chamar Paulo de São Paulo e Mateus de São Mateus?
b. Um diálogo sobre a compreensão de comunhão dos santos
certamente contribuiria para situar Maria na nuvem das testemunhas. Nem a morte
rompe a comunhão daqueles que, em Cristo, estiveram fraternalmente unidos
durante sua vida.
c. Certamente há elementos não teológicos que dificultam
a compreensão do papel de Maria na história da salvação.
Por isso, o estudo juntos e a história poderá se constituir em
importante contribuição para a aproximação.
d. Deve-se tomar a sério que, desde o Concilio Vaticano II, a Igreja
Católica oficialmente tem assumido uma orientação de menor
euforia mariana.
e. É importante também observar que o Vaticano II admite uma
hierarquia de verdades (hierarchia veritatum). Os dogmas marianos de 1854 e
1950 poderiam, assim, receber menos destaque por amor aos irmãos que
tem grandes dificuldades na compreensão dos mesmos.
f. Recomenda-se que a Igreja Católica Apostólica Romana busque
entender as dificuldades que as Igrejas da Reforma têm com certas expressões
muito em voga na espiritualidade mariana, como: a Cristo através de
Maria (ad Christum per Mariam), Rainha dos Céus, Advogada, Consoladora,
Auxiliadora, Cooperadora na Graça e Medianeira.
g. Para as Igrejas da Reforma, por sua vez, é importante procurar compreender
todo o vasto campo da religiosidade popular. Religião age sobre os sentimentos.
Estes, em seu curso, fogem ao consenso doutrinário que buscamos.
h. Para o diálogo é decisivo reconhecer o esforço que,
de parte a parte, está sendo feito no sentido de uma reconsideração
da própria posição. A Igreja Católica, em boa medida,
esta tomando a sério o que diz o Vaticano II: Tanto nas palavras quanto
nos fatos, evitem diligentemente qualquer coisa que possa induzir a erro os
irmãos separados ou qualquer outra pessoa sobre a verdadeira doutrina
da igreja.
i. De qualquer modo, também nas afirmações sobre Maria
não se deve pretender unanimidade, mas aceitar um legítimo pluralismo
teológico das diversas igrejas.
Arcebispo Primaz Katholikos
S.B. Dom ++ Paulo Jorge de Laureano – Vieira y Saragoça
(Mar Alexander I da Hispânea)
Última actualização deste
Link em 01 de Outubro de 2011