A Virgindade Perpétua de Maria
Este tratado surgiu por volta do ano 383 d.c., quando Jerónimo
e Helvídio encontravam-se em Roma, no tempo do Papa Dâmaso. As únicas
informações contemporâneas que se conservam de Helvídio
são estas, fornecidas por Jerónimo.
A questão que trouxe este tratado à luz foi: teria a Mãe
de Nosso Senhor permanecido virgem após o nascimento de seu Filho? Helvídio
afirmava que os Evangelhos mencionando os "irmãos" e "irmãs" do
Senhor provavam que Maria teria tido outros filhos, baseando sua opinião
nos escritos de Tertuliano e Vitorino.
A conclusão deste ponto de vista é que a virgindade se situa
numa posição inferior ao casamento. Jerónimo defende o
outro lado, mantendo três proposições contra Helvídio:
José era o suposto marido de Maria, mas não o era de facto;
Os "irmãos" do Senhor eram seus primos (parentes), não
irmãos de verdade; e a virgindade é superior ao estado de casado.
A primeira proposição ocupa os capítulos 3 a 8. Baseia-se
no registro de Mt. 1, 18-25, especialmente nas palavras: "antes que coabitassem" (cap.
4) e "não a conheceu até que" (caps. 5-8).
A segunda, gira em torno da expressão: "filho primogénito" (caps.
9-10), que Jerónimo afirma ser aplicável não apenas ao
primeiro de uma série de vários filhos, mas também ao
filho único. Quanto à menção dos irmãos
e irmãs de Jesus, Jerónimo garante serem filhos de outra Maria,
esposa de Cléofas ou Clopas (caps. 11-16); para fundamentar sua posição,
cita diversos escritores da Igreja (cap. 17).
Na terceira e última parte, para sustentar a preferência da virgindade
sobre o casamento, Jerónimo afirma que não apenas Maria mas também
José mantiveram seu estado virginal (cap. 19); diz, também, que
embora o casamento possa ser um estado santo, apresenta grandes obstáculos
para a oração (cap. 20) e que o ensinamento da Escritura declara
que o estado de virgindade e continência estão mais de acordo
com o desejo de Deus do que o casamento (caps. 21-22).
Parte I : Introdução
Capítulo I
Há algum tempo, recebi o pedido de alguns irmãos para responder
a um panfleto escrito por um tal Helvídio. Demorei para fazê-lo,
não porque fosse tarefa difícil defender a verdade e refutar
um ignorante sem cultura, que dificilmente tomou contacto com os primeiros
graus do saber, mas porque fiquei preocupado em oferecer uma resposta digna,
que desmoronasse os seus argumentos.
Havia ainda a preocupação de que um discípulo confuso
(o único sujeito do mundo que se considera clérigo e leigo; único
também, como se diz, que pensa que a eloquência consiste na tagarelice,
e que falar mal de alguém torna o testemunho de boa fé) poderia
passar a blasfemar ainda mais, caso lhe fosse dada outra oportunidade para
discutir. Ele, então, como se estivesse sobre um pedestal, passaria
a espalhar suas opiniões em todos os lugares.
Também temia que, quando caísse na realidade, passasse a atacar
seus adversários de forma ainda mais ofensiva.
Mas, mesmo que eu achasse justos todos esses motivos para guardar silêncio,
muito mais justamente deixaram de me influenciar a partir do instante em que
um escândalo foi instaurado entre os irmãos, que passaram a acreditar
nesse falatório. O machado do Evangelho deve agora cortar pela raiz
essa árvore estéril, e tanto ela quanto suas folhagens sem frutos
devem ser atiradas no fogo, de tal maneira que Helvídio - que jamais
aprendeu a falar - possa aprender, finalmente, a controlar a sua língua.
Capítulo II
Invoco o Espírito Santo para que Ele possa se expressar através
da minha boca e, assim, defenda a virgindade da bem-aventurada Maria. Invoco
o Senhor Jesus para que proteja o santíssimo ventre no qual permaneceu
por aproximadamente dez meses, sem quaisquer suspeitas de colaboração
de natureza sexual. Rogo também a Deus Pai para que demonstre que a
mãe de Seu Filho - que se tornou mãe antes de se casar - permaneceu
Virgem ainda após o nascimento de seu Filho.
Não desejamos entrar no campo da eloquência, nem usar de armadilhas
lógicas ou dos subterfúgios de Aristóteles. Usaremos as
reais palavras da Escritura; [Helvídio] será refutado pelas mesmas
provas que empregou contra nós, para que possa ver que lhe foi possível
ler conforme está escrito, e, ainda assim, foi incapaz de perceber a
conclusão de uma fé sólida
Parte II: José era o suposto marido de Maria; não
era marido de facto
Capítulo III
Sua primeira declaração é Mateus que diz: "O nascimento
de Jesus Cristo foi assim: quando sua mãe Maria estava prometida a José,
antes de coabitarem, encontrou-se grávida pelo Espírito Santo.
E José, seu marido, sendo um homem justo e não desejando denunciá-la
publicamente, pensou em repudiá-la em segredo. Mas enquanto pensava
essas coisas, um anjo do Senhor lhe apareceu em sonho e disse: 'José,
filho de Davi, não temas em tomar para ti Maria como tua esposa, pois
o que nela foi gerado provém do Espirito Santo'. Notem - continua ele
- "que a palavra empregada é 'prometida' e não 'confiada',
como vocês dizem; é óbvio que a única razão
para estar prometida é porque deveria se casar um dia. E o Evangelista
não iria dizer 'antes de coabitarem' se eles não viessem a coabitar
no futuro, já que ninguém usaria a frase 'antes de jantar' se
certa pessoa não fosse jantar. Também o anjo a chama 'tua esposa'
e se refere a ela como unida a José. A seguir, somos chamados a ouvir
a declaração da Escritura: 'E José despertou do seu sono
e fez como o anjo do Senhor lhe havia ordenado, tomando-a para si como esposa;
e não a conheceu até que deu à luz a seu filho'".
Capítulo IV
Consideremos cada um desses pontos, pois seguindo o caminho dessa impiedade
mostraremos que ele [Helvídio] está se contradizendo. Admite
que [Maria] estava "prometida" e que o próximo passo seria
se tornar esposa daquele homem a quem estava prometida. Novamente, ele a chama
de "esposa" e diz que a única razão para estar prometida
seria pelo facto de casar-se um dia. E, temendo que não o compreendêssemos
suficientemente bem, ainda diz: "a palavra usada é 'prometida'
e não 'confiada', isto é, ela ainda não se tornara esposa,
nem mesmo havia sido unida pelo contrato de casamento".
Mas quando ele continua: "o Evangelista jamais usaria tais palavras se
eles não viessem a se juntar futuramente, já que não se
usa a frase 'antes de jantar' se certa pessoa não for jantar",
sinceramente não sei se devo lamentar ou rir. Deveria acusá-lo
de ignorância ou de imprudência? Como se isto, supondo que uma
pessoa dissesse: "Antes de jantar no porto, naveguei para a África",
significasse que tais palavras obrigatoriamente demonstrassem que essa pessoa
alguma vez já jantou no porto. Se eu preferisse dizer: "o apóstolo
Paulo, antes de ir para a Espanha, foi preso em Roma", ou (como também
acho provável) "Helvídio, antes de se arrepender, morreu";
acaso teria Paulo obrigatoriamente estado na Espanha [após a prisão],
ou Helvídio se arrependeria após a morte, ainda que a Escritura
diga: "No Sheol quem vos dará graças?"
Não podemos entender a preposição "antes" -
ainda que muitas vezes signifique ordem no tempo - como também ordem
de pensamento? Portanto, não há necessidade que nossos pensamentos
se concretizem, se alguma causa suficiente vier a evitá-los (sua concretização).
Logo, quando o Evangelista diz "antes que coabitassem", indica apenas
o tempo imediatamente precedente ao casamento, e mostra que estava em estado
bem adiantado, pois ela já estava prometida, a ponto de estar próximo
o momento de se tornar esposa. Conforme diz [o Evangelista], antes de se beijarem
e se abraçarem, antes da consumação do casamento, ela
encontrou-se grávida. E ela foi determinada para pertencer a ninguém
mais a não ser José, que guardou com zelo o ventre cada vez maior
de sua prometida, com olhar inquieto mas que, a esta altura, quase que com
o privilégio de um marido.
Ainda que possa parecer - conforme o exemplo citado - que ele teve relações
sexuais com Maria após o seu parto, o seu desejo poderia ter desaparecido
pelo facto dela já ter concebido anteriormente. E, embora encontremos
que foi dito a José em um sonho: "Não temas em receber Maria
por tua esposa" e, de novo: "José despertou do seu sono e
fez conforme o anjo lhe ordenara, tomando-a por sua esposa", não
devemos nos preocupar com isto, pois ainda que seja chamada "esposa",
ela somente deixou de ser prometida, pois sabemos que é usual na Escritura
dar esse título para aqueles que são noivos.
A seguinte evidência, retirada do Deuteronómio, assim o indica: "Se
um homem" - diz o Escritor [sagrado] - "encontra uma mulher prometida
no campo e a violenta, deve ser morto porque humilhou a esposa do seu próximo";
e, em outro lugar: "Se uma virgem é prometida a um marido, e um
homem a encontra na cidade e a violenta, então deveis trazê-los
para fora do portão da cidade e os apedrejareis até à morte;
a mulher porque não gritou, estando na cidade, e o homem porque humilhou
a esposa do seu próximo. Fareis isto para eliminar o mal do meio de
vós"; e também, em outra parte: "Que tipo de homem é este
que possui uma esposa prometida e ainda não a recebeu? Que volte para
sua casa, para que não morra na batalha, e que outro homem a despose".
Mas se alguém guarda dúvidas do porquê a Virgem concebeu
após estar prometida [a José], uma vez que não estava
prometida a mais ninguém, ou, para usar os termos da Escritura, estava
sem marido, deixe-me explicar três razões:
1 - Pela genealogia de José, Maria possuía parentesco com ele,
e a origem de Maria também precisava ser demonstrada;
2 - Porque ela não poderia ser enquadrada na Lei de Moisés para
ser apedrejada como adúltera;
3 - Porque em sua fuga para o Egipto ela precisava de segurança, o que
poderia ser obtido com a ajuda de um guardião, de preferência
um marido.
Quem, naquele tempo, acreditaria na palavra da Virgem, de que teria concebido
pelo poder do Espírito Santo, e que o anjo Gabriel lhe teria aparecido
para anunciar o propósito de Deus? Todos não a chamariam de adúltera,
como fizeram com Susana? Ainda nos tempos presentes, quando praticamente toda
a terra abraçou a Fé, não vêm os judeus afirmar
que as palavras de Isaías: "Eis que a 'Virgem' conceberá e
dará à luz um filho" são equívocas porque
o termo hebraico «almah» que aparece na frase, significa mulher
jovem, enquanto que o termo «bethulah», que significa virgem não é usado?
Tal posição, abordaremos com mais detalhes adiante.
Finalmente, com excepção de José, Isabel e da própria
Maria - e talvez de mais alguns poucos que podemos supor ouviram a verdade
da boca deles - todos supunham que Jesus era filho de José. E de tal
modo era essa a suposição que até mesmo os Evangelistas,
expressando a opinião corrente - que é a regra correta para qualquer
historiador - o chamavam de pai do Salvador, como, por exemplo: "Movido
pelo Espírito, ele (isto é, Simeão) veio ao Templo. Então
os pais trouxeram o menino Jesus para cumprir as prescrições
da Lei a seu respeito"; e, em outro lugar: "E seus pais iam todos
os anos a Jerusalém por ocasião da festa da Páscoa";
e, mais adiante: "Tendo completado os dias, eles retornaram, mas o menino
Jesus permaneceu em Jerusalém, e seus pais não sabiam disso".
Note-se que a própria Maria respondeu ao anjo Gabriel com as seguintes
palavras: "Como se sucederá isso, se não conheço
varão?", dizendo isto a respeito de José; e, mais: "Filho,
por que fizeste isto conosco? Teu pai e eu estávamos à tua procura".
Não fazemos uso aqui, como muitos fazem, do discurso dos judeus ou dos
escarnecedores. Os Evangelistas chamam José de "pai" e Maria
confessa que ele era pai. Não - como já disse antes - que José fosse
realmente o pai do Salvador, mas, preservando a reputação de
Maria, todos o viam como sendo o pai de Jesus, pois ouvira a advertência
do anjo: "José, filho de David, não temas em tomar para
ti Maria como tua esposa, pois o que nela foi gerado provém do Espírito
Santo", pois pensava em repudiá-la em segredo; tudo isto bem demonstrando
que o filho não era dele.
Ao dizermos tudo isto, mais com o objectivo de oferecer uma instrução
imparcial do que responder a um oponente, mostramos o porquê José era
chamado de pai de Nosso Senhor e o porquê Maria era chamada de esposa
de José. Isto também responde ao porquê de certas pessoas
serem chamadas de "seus irmãos".
Capítulo V
Entretanto, este último ponto encontrará seu lugar apropriado
mais adiante.
Vamos agora abordar outros tópicos. A passagem que discutiremos agora é: "E
José despertou de seu sono e fez conforme o anjo lhe ordenara, tomando-a
como sua esposa; e não a conheceu até que deu à luz a
um filho, e ele lhe colocou o nome de Jesus". Aqui, antes de mais nada, é absolutamente
inútil para o nosso oponente querer demonstrar, de forma tão
elaborada, que essas palavras se referem à cópula sexual, especialmente
na compreensão intelectual: qualquer um pode negar isso e toda pessoa
de bom senso pode imaginar a estupidez da refutação que Helvídio
se esforçou por sustentar. Ele quer nos ensinar que o advérbio "até que" implica
um tempo fixo e definitivo que, ao se completar, ocorre o evento que até então
não se realizara; como neste caso: "e não a conheceu até que
deu à luz um filho".
Segundo ele, é claro que ela Maria foi conhecida depois, e que apenas
aguardara o tempo necessário para o nascimento de seu filho. Para defender
sua posição, Helvídio amontoa textos e mais textos sem
qualquer critério, comportando-se como um gladiador cego que fica movimentando
sua espada a esmo, dizendo asneiras com sua língua barulhenta e terminando
sem ferir ninguém, a não ser a si próprio.
Capítulo VI
Nossa resposta é brevemente esta: as palavras "conhecer" e "até que",
na linguagem da Sagrada Escritura, possuem duplo significado. Do primeiro [quanto
a "conhecer"], ele mesmo [Helvídio] ofereceu-nos uma dissertação
para mostrar que pode se referir a relação sexual, como também
ninguém duvida que pode ser usada para significar percepção
(entendimento, saber), como, por exemplo: "o menino Jesus permaneceu em
Jerusalém e seus pais não tinham conhecimento disso".
Já que provamos que ele seguiu o uso da Escritura neste caso, com relação à expressão "até que" será completamente
refutado pela autoridade da mesma Escritura Sagrada, pois várias vezes
significa um certo tempo sem limitação, como quando Deus diz
a certas pessoas pela boca do profeta: "Até à vossa velhice
Eu sou o mesmo"; acaso Ele deixará de ser Deus após essas
pessoas envelhecerem? E, no Evangelho, o Salvador diz aos Apóstolos: "Estarei
convosco até a consumação do mundo"; será que
quando chegar o fim dos tempos o Senhor abandonará Seus discípulos
e estes, quando estiverem sentados sobre os doze tronos para julgar as doze
tribos de Israel, estarão privados da companhia de seu Senhor?
Também Paulo, ao escrever aos Coríntios, declara: "[Cada
um, porém, na sua ordem:] Cristo, as primícias; depois os que
são de Cristo, na sua vinda. Então virá o fim quando ele
entregar o reino a Deus o Pai, quando houver destruído todo domínio
e toda autoridade e todo poder. Pois é necessário que Ele reine
até que haja posto todos os inimigos debaixo de seus pés".
Certos de que a passagem relata a natureza humana de Nosso Senhor, não
temos como negar que as palavras são Daquele que sofreu [morte] na cruz
e que mais tarde se sentou à direita [de Deus]. O que Ele quer demonstrar
ao dizer que "é necessário que Ele reine até que
haja posto todos os inimigos debaixo de seus pés"? O Senhor reinará apenas
até colocar todos os seus inimigos sob os seus pés e, depois
disso, deixará de reinar? É óbvio que seu reino estará começando
quando seus inimigos estiverem sob os seus pés.
Também David, na Quarta Canção da Ascensão, fala
assim: "Olhai: assim como os olhos dos servos olham para a mão
de seu mestre; assim como os olhos da moça olham para a mão de
sua senhora; assim também os nossos olhos olham para o Senhor, nosso
Deus, até que tenha misericórdia de nós". Será então
que o profeta, olhando para Deus com o intuito de obter misericórdia,
irá desviar seu olhar para o chão assim que obtiver misericórdia?
[Certamente que não,] ainda que ele, em algum lugar, diga: "Meus
olhos quedam pela tua salvação e pela palavra da tua justiça".
Eu poderia acrescentar inúmeras passagens como estas que, atestam esse
uso, e cobriria com uma nuvem de provas a verbosidade do nosso contundente.
Porém, acrescentarei mais algumas passagens e deixarei que o leitor
descubra outras semelhantes por si mesmo.
Capítulo VII
A Palavra de Deus diz em Génesis: "Entregaram a Jacob todos os
deuses estranhos que tinham em suas mãos, e as argolas que penduravam
em suas orelhas; e Jacob escondeu-os debaixo do carvalho que está junto
a Siquém, e continuam perdidos até o dia de hoje". Igualmente
lemos no final do Deuteronómio: "Assim, Moisés, servo do
Senhor, morreu ali na terra de Moab, conforme a palavra do Senhor. E foi sepultado
no vale, na terra de Moab, defronte de Beth-Peor; até o dia de hoje
ninguém sabe o lugar da sua sepultura".
Certamente devemos identificar a expressão "até o dia de
hoje" com o tempo da composição da história, podendo
vocês preferirem o ponto de vista que afirma que Moisés foi o
autor do Pentateuco ou que Esdras o reeditou. Não faço qualquer
objecção em ambos os casos. A questão agora é saber
se as palavras "até o dia de hoje" se referem à época
da publicação ou composição desses livros e, caso
o sejam, por que [Helvídio] não mostra - agora que muitos e muitos
anos se passaram desde aquele dia - que os ídolos escondidos sob o carvalho
ou a sepultura de Moisés foram descobertos, já que ele sustenta,
com demasiada teimosia, que certa coisa não pode ocorrer dentro de um
espaço de tempo delimitado pela expressão "até que" mas,
para que venha a ocorrer, é necessário que atinja aquele ponto
delimitado por "até que"?
Ele faria bem se prestasse atenção ao idioma da Sagrada Escritura
e compreendesse como nós - já que se encontra mergulhado na lama;
certas coisas parecem ambíguas quando não claramente declaradas,
emboras outras coisas sejam deixadas assim para exercitar o nosso intelecto.
Ora, se ainda quando o evento permanecia fresco na memória daqueles
homens que viram e conviveram com Moisés já se desconhecia o
local da sepultura, quanto mais agora depois que tantos anos se passaram!
E da mesma forma devemos interpretar o que se conta a respeito de José.
O Evangelista apontou uma circunstância que poderia causar escândalo,
ou seja, que Maria não foi conhecida por seu marido até dar à luz,
e ele (o Evangelista) agiu assim para que tivéssemos a certeza de que
ela - de quem José se absteve enquanto havia lugar para dúvidas
sobre a importância da visão - não foi conhecida depois
de seu parto.
Capítulo VIII
Em resumo: o que eu gostaria de saber é por que José teria se
privado [de Maria] até o dia de ter ela dado à luz? Helvídio
certamente responderia: "Porque ele ouviu o que o anjo disse: 'pois o
que nela foi gerado provém do Espírito Santo'". Nós,
então, responderíamos a seguir que [José] certamente ouviu
o que o [anjo] disse: "José, filho de Davi, não temas em
tomar para ti Maria como tua esposa". A razão pela qual ele estava
proibido de repudiar sua esposa era porque não achava que ela fosse
adúltera. Seria então verdade que o [anjo] ordenara que não
tivesse relações sexuais com sua esposa? Não está suficientemente
claro que a advertência feita foi para que não se separasse dela?
E poderia o homem justo pensar em se aproximar dela tendo ouvido que o Filho
de Deus estava em seu ventre? Óptimo! Vamos então acreditar que
o mesmo homem que deu tanto crédito a um sonho, não se atreveu
a tocar em sua esposa, mesmo depois, quando ele ouviu dos pastores que o anjo
do Senhor desceu dos céus e lhes disse: "Não temais! Eis
que vos anuncio uma grande alegria, que o será também para todo
o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de David, o Cristo Senhor"; e após,
quando a multidão celeste se juntou ao anjo e entoaram: "Glória
a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade"; e ainda
quando o justo Simeão abraçou a criancinha e exclamou: "Podeis
levar agora para ti este teu Servo, Senhor, pois os meus olhos viram a tua
salvação, conforme a tua palavra"; e também quando
[José] viu a profetisa Ana, os Magos, a Estrela [de Belém], Herodes,
os anjos...
Eu diria então: quer Helvídio nos fazer acreditar que José,
muito bem inteirado de tamanhas maravilhas, ousaria tocar o templo de Deus,
a morada do Espírito Santo, a mãe do seu Senhor? Maria mantinha
todos esses eventos "guardados em seu coração". Vocês
não podem cair na vergonha de dizer que José desconhecia tudo
isso, pois Lucas nos diz: "Seu pai e sua mãe ficavam maravilhados
das coisas que diziam a Seu respeito".
E vocês ainda afirmam, arrogantemente, que a leitura dos manuscritos
gregos é corrupta, embora seja exactamente isso que todos os escritores
gregos fizeram constar em seus livros, e não apenas eles, mas também
muitos escritores latinos interpretaram as palavras da mesma forma... E nem
precisaremos considerar as variações existentes nas cópias,
pois todos os registros existentes, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento,
se encontram assim desde que foram traduzidos para o Latim; portanto, devemos
crer que a água da fonte brota mais pura que a [água] do rio.
Parte III: Os "irmãos" do Senhor eram primos (parentes); não
irmãos de facto.
Capítulo IX
Helvídio poderá responder: "O que você diz é,
na minha opinião, insignificante. Seus argumentos foram perdidos no
tempo e esta discussão demonstra mais astúcia do que verdade.
Por que a Escritura não diria como diz de Tamar e Judá: 'E ele
a tomou como sua esposa e jamais a conheceu'? Porque Mateus não usou
estas palavras se quisesse mesmo expressar esse significado? Ele diz claramente:
'e não a conheceu até que deu à luz a um filho'. Logo,
após o parto, certamente a conheceu, pois se privou dela até o
momento do parto".
Capítulo X
Se vocês são tão contenciosos, deveriam com suas próprias
ideias testar o vosso mestre. Vocês não devem permitir que se
faça uma separação entre o parto e o intercurso (sexual).
Não devem dizer: "Se uma mulher conceber e tiver um menino, será imunda
sete dias; assim como nos dias da impureza de suas regras, será imunda.
No oitavo dia, circundar-se-á o prepúcio do menino e, durante
trinta e três dias, ela ficará ainda purificando-se do seu sangue
e não tocará em qualquer coisa sagrada" e outras coisas
semelhantes. Devem recordar que se José se aproximasse dela, estaria
sujeito à reprovação de Jeremias: "São como
cavalos de lançamento bem nutridos, que andam relinchando cada um à mulher
do seu próximo".
De outra maneira, como se explicariam as palavras "e não a conheceu
até que deu à luz a um filho", se ele ainda deveria aguardar
o término do tempo de purificação, pois senão o
seu desejo acabaria por sofrer com um período ainda mais longo, de 40
dias? A mãe precisava se purificar da mácula de seu filho recém-nascido
de modo que este ficava sob os cuidados da parteira, enquanto o marido apoiava
sua esposa enfraquecida. Portanto, é certo que [José e Maria]
se casaram, já que o Evangelista não pode ser acusado de ter
mentido. Mas Deus nos livre de pensarmos tais coisas a respeito da mãe
do Salvador e de um homem justo! Nenhuma parteira assistiu ao nascimento de
Jesus; nenhuma mulher se intrometeu ali. Com suas próprias mãos
[Maria] envolveu o Menino em pedaços de pano; ela mesma foi mãe
e parteira, e, como nos é relatado, "O colocou numa manjedoura,
pois não havia nenhum quarto para eles na pousada"; eis a declaração
canónica que refuta as estórias apócrifas, pois foi Maria
mesma que o envolveu em pedaços de pano e o que se sucederia a partir
daí torna impossível a maliciosa ideia de Helvídio, uma
vez que não havia um local adequado para o acto sexual naquela pousada.
Capítulo XI
Darei agora uma resposta mais ampla a respeito das palavras "antes que
coabitassem" e "não a conheceu até que deu à luz
a um filho". Mas devo observar primeiro que a minha resposta segue a ordem
do argumento dele até o terceiro ponto, pois ele dirá que Maria
teve outros filhos quando cita a passagem: "E José se dirigiu até a
cidade de David, para se inscrever com Maria, sua noiva, que estava grávida.
Enquanto lá estavam, completaram-se os dias para o parto e ela deu à luz
ao seu filho primogénito". Esforça-se, assim, para provar
que o termo "primogénito" só pode ser aplicado a uma
pessoa que teve outros irmãos e que, no caso, seriam filhos de seus
pais.
Capítulo XII
Nossa posição é esta: todo filho único é primogénito
mas nem todo primogénito é filho único. Por primogénito
entendemos não apenas aquele que pode ser sucedido por outros, mas aquele
que não teve predecessor. Assim diz o Senhor a Abraão: "Todo
aquele que abrir o útero, de toda a carne, será oferecido ao
Senhor; tanto de homens como de animais, será teu. Contudo, os primogénitos
dos homens deverão ser resgatados; também os primogénitos
dos animais impuros resgatarás".
A palavra de Deus define "primogénito" como todo aquele que
abriu o útero. Ora, se o título pertence apenas àqueles
que têm irmãos mais jovens, então os sacerdotes não
poderiam reivindicar o primogénito até que outros sucessores
nascessem, pois, caso contrário, isto é, se não houvesse
outros partos, seria necessário provar o estado de primogénito
e não simplesmente o de filho único.
"
E aqueles que devem ser resgatados com um mês de idade, devem ser resgatados
, de acordo com tua estimativa por cinco siclos [de moedas], além do
siclo do santuário. Mas o primogénito de um boi ou de uma ovelha
ou de uma cabra, não deverás resgatar; eles são sagrados".
A palavra de Deus me compele a dedicar a Deus o que quer que abra o útero
se for o primogénito de animais puros; se de animais impuros, devo resgatá-lo,
dando o valor devido ao sacerdote.
Poderia replicar: Por que me sujeitais ao curto espaço de um mês?
Por que falais do primogénito, quando não posso dizer que há irmãos
que irão nascer? Esperai até que nasça o segundo filho.
Não explico nada ao sacerdote, como se apenas o nascimento do segundo
desse ao primeiro que tive a condição de primogénito.
Não deveria, ao pé da letra, chamar-me e convencer-me de louco,
se em vez de declarar que primogénito é um título devido àquele
que rompe o útero, pretendesse restringir essa condição àqueles
que após terão irmãos? Então, tomando o caso de
João: estamos de acordo que ele foi filho único; eu precisaria
saber se ele não foi também filho primogénito, e se não
foi absolutamente sujeito à lei. Não há dúvidas
quanto a isso.
À
toda hora a Sagrada Escritura fala assim do Salvador: "E quando chegou
o dia de sua purificação, de acordo com a lei de Moisés,
eles o levaram a Jerusalém para apresentá-lo ao Senhor [como
está prescrito na lei do Senhor, todo macho que abre o útero
deve ser consagrado ao Senhor] e para oferecer em sacrifício de acordo
com o que é prescrito na lei do Senhor, um par de rolinhas ou duas pombas
novas". Se esta lei se refere somente aos primogénitos, e esses
deveriam ser os primogénitos com irmãos sucessores, ninguém
seria obrigado pela lei se não pudesse afirmar que houve sucessores.
Mas visto que, como aquele que não tem irmãos mais novos, é sujeito à lei
do primogénito, deduzimos que é chamado primogénito aquele
que abre o útero da mãe e que não foi precedido por ninguém,
e não aquele cujo nascimento foi seguido por outro de irmão mais
novo.
Moisés escreve no Êxodo: "E acontecerá ao passar da
meia-noite que o Senhor ferirá todos os primogénitos das terras
do Egipto, desde o primogénito do Faraó que reina em seu trono
até os primogénitos dos cativos que estiverem nas prisões;
e todos os primogénitos do acampamento". Diga-me: eram os que pereceram
pelas mãos do Exterminador somente seus primogénitos, ou alguém
mais, ou seja, os filhos únicos? Se somente aqueles que tinham irmãos
eram chamados primogénitos, somente os filhos únicos escaparam
da morte. E se, de facto, os filhos únicos foram trucidados, isso se
opõe à sentença pronunciada, porque nascidos para morrer
eram somente os primogénitos. Você deverá ou livrar os
filhos únicos da pena, e nesse caso, se tornará ridículo;
ou, se concorda que eles foram mortos, ganhamos a questão, embora não
tenhamos de lhe agradecer isso, porque os filhos únicos eram também
primogénitos.
Capítulo XIII
A última proposição de Helvídio era esta, e era
o que ele queria demonstrar quando tratou dos primogénitos, afirmando
que são citados nos Evangelhos os irmãos de Jesus. Por exemplo: "Ora,
sua mãe e seus irmãos permaneciam procurando falar com Ele".
E em outro lugar: "Depois disso Ele foi para Cafarnaum, com sua mãe
e seus irmãos". E de novo: "Seus irmãos então
lhe disseram: 'Parte daqui e vai para a Judeia, porque teus discípulos
podem também testemunhar as obras que fazes. Porque ninguém faz
nada em segredo, mas procura ser conhecido abertamente. Se realizas tais coisas,
manifesta-te ao mundo". E João acrescenta: "Porque mesmo seus
irmãos não acreditavam nele".
Também Marcos e Mateus: "E indo à sua própria terra,
ensinava em suas sinagogas, tanto que [sua gente] ficava atónita e dizia:
'De onde tirou este homem tal sabedoria e miraculosas obras? Não é o
filho do carpinteiro. Não é sua mãe chamada Maria e seus
irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs
não moram connosco". Lucas, também, nos Actos dos Apóstolos
relata: "Todos aqueles com um só propósito continuaram firmes
na oração, com as mulheres e Maria, a mãe de Jesus, e
com seus irmãos".
Paulo, o Apóstolo, também uma vez esteve com eles, e testemunha
sua precisão histórica: "E cresci pela revelação,
mas não vi os outros apóstolos, a não ser Pedro e Tiago,
o irmão do Senhor". E de novo, em outro lugar: "Não
temos o direito de comer e beber? Não temos o direito de trabalhar com
as viúvas, assim como o resto dos Apóstolos, os irmãos
do Senhor e Pedro?"
E, por medo, ninguém aceitou o testemunho dos judeus, pois foi de sua
boca que ouvimos o nome de Seus irmãos, mas mantivemos que seus conterrâneos
ficaram decepcionados com esse mesmo erro a respeito dos irmãos pelo
qual [os judeus] passaram a acreditar sobre o pai, Helvídio profere
uma dura observação de advertência e grita: "Os mesmos
nomes estão repetidos pelos Evangelistas em outro lugar e as mesmas
pessoas são ali irmãos do Senhor e filhos de Maria".
Mateus diz: "E muitas mulheres estavam ali (sem dúvida ao pé da
cruz do Senhor), observando de alguma distância, e elas tinham seguido
Jesus desde a Galileia, ajudando-o, entre as quais estava Maria Madalena, Maria
a mãe de Tiago menor e de José, e Salomé"; e no mesmo
lugar, logo depois: "E muitas outras mulheres que subiram com Ele a Jerusalém".
Lucas também diz: "Ali estavam Maria Madalena e Joana, e Maria,
a mãe de Tiago, e as outras mulheres com elas".
Capítulo XIV
Minha razão para repetir sempre a mesma coisa é para adverti-lo
para não fazer uma falsa afirmação, divulgando que eu
deixei de lado tais passagens, como propícias a você, e que essa
interpretação foi desfigurada e desfeita não pela evidência
da Escritura, mas por argumentos evasivos.
"
Observe:" - diz ele - "Tiago e José são filhos de Maria,
e são as mesmas pessoas que são chamadas irmãos pelos
judeus. Note que Maria é a mãe de Tiago o menor e de José.
E Tiago é chamado o menor para distingui-lo de Tiago o maior que era
filho de Zebedeu, como Marcos afirma em outro lugar; E Maria Madalena e Maria
a mãe de José estavam onde ele (=Jesus) fora colocado. E quando
passou o Sábado, elas compraram essências para irem ungi-lo".
E, como era de se esperar, ele diz: "Quão pobre e ímpia
visão temos de Maria, se afirmamos que quando outras mulheres estavam
ocupadas com o sepultamento de Jesus, ela, Sua mãe, estava ausente;
ou se inventamos alguma outra Maria; e tudo o mais porque o Evangelho de São
João testemunha que ela estava ali presente, quando o Senhor, do alto
da cruz a recomendou como Sua mãe, agora uma viúva, aos cuidados
de João. Ou deveríamos supor que o Evangelista caiu em tamanho
erro e nos induziu a tamanho erro, chamando Maria a mãe daqueles que
eram conhecidos dos judeus como irmãos de Jesus?"
Capítulo XV
Que cegueira, que raivosa loucura o leva à sua própria destruição!
Você (Helvídio) diz que a mãe do Senhor estava presente
ao pé da cruz; diz que ela foi confiada ao discípulo João
por causa de sua viuvez e condição de soledade, como se no ponto
de vista de sua própria afirmação, ela não tivesse
quatro filhos e numerosas irmãs, com o conforto dos quais ela poderia
se apoiar? Você também lhe dá o nome de viúva, que
não se encontra na Sagrada Escritura. E embora cite, a cada momento,
o Evangelho, somente as palavras de João lhe desagradam. Você diz,
de passagem, que ela estava presente ao pé da cruz porque parece que
você não a omitiu de propósito, e contudo [não diz]
nenhuma palavra sobre as mulheres que estavam com ela. Poderia perdoá-lo
se fosse ignorante, mas vejo que você tem uma razão para suas
omissões.
Deixe-me destacar então o que João disse: "Mas estavam de
pé junto à cruz de Jesus sua mãe, a irmã de sua
mãe, Maria, a esposa de Cléofas, e Maria Madalena".
Não há nenhuma dúvida que existiam dois apóstolos
chamados pelos nomes de Tiago: Tiago, o filho de Zebedeu, e Tiago, o filho
de Alfeu. Por acaso você tem em vista que o comparativamente desconhecido
Tiago o menor, que é chamado nas Escrituras filho de Maria, não
contudo de Maria a mãe do Nosso Senhor, era apóstolo ou não?
Se era um apóstolo, devia ser o filho de Alfeu e um crente em Jesus, "porque
nem seus irmãos acreditavam n'Ele". Se não era um apóstolo
mas um terceiro Tiago (que possa ser, não sei), como poderia ser tido
como o irmão do Senhor, e como, sendo um terceiro, poderia ser chamado "menor" para
ser destinguido do "maior", porquanto maior e menor são usados
para mostrar relação existente não entre três, mas
entre dois? Observe, ainda mais, que o irmão do Senhor é um apóstolo,
uma vez que Paulo diz: "Então depois de três dias eu fui
a Jerusalém para visitar Pedro e fiquei com ele quinze dias. Mas não
vi nenhum outro dos apóstolos, a não ser Tiago, irmão
do Senhor". E na mesma Epístola: "E quando eles perceberam
a graça que me foi concedida, Tiago, Pedro e João que eram considerados
os pilares", etc.
E você não poderá supor que esse Tiago fosse o filho de
Zebedeu, bastando para isso ler os Actos dos Apóstolos, onde você encontrará que
esse último já tinha sido trucidado por Herodes. A única
conclusão é que a Maria que é descrita como a mãe
de Tiago o menor era a esposa de Alfeu e irmã de Maria, a mãe
do Senhor, aquela que é chamada por João Evangelista "Maria
de Cléofas", seja por filiação, seja por parentesco,
seja por outra razão.
Mas se você julga que são duas pessoas porque em outro lugar lemos: "Maria
a mãe de Tiago menor" e aqui: "Maria de Cléofas",
você terá a aprender ainda que era costume na Escritura dar diferentes
nomes ao mesmo indivíduo. Raguel, sogro de Moisés, é chamado
também de Jetro. Gedeão, sem nenhuma outra razão aparente
para a troca, de repente se torna Jerubbaal. Ozias, rei de Judá, tem,
como nome alternativo, Azarias. O Monte Tabor é chamado Itabyrium. Igualmente,
o Hermon é chamado pelos fenícios Sanior, e pelos amorreus Sanir.
O mesmo pedaço do país é conhecido por três nomes:
Negebb, Teman e Darom, em Ezequiel. Pedro é também chamado Simão
e Cefas. Judas, o zelote, em outro Evangelho é chamado Tadeu. Há numerosos
outros exemplos que o leitor pode por si mesmo colecionar, em toda a Escritura.
Capítulo XVI
Agora aqui temos a explicação do que eu me esforcei por mostrar,
como foi que os filhos de Maria, a irmã da mãe de Nosso Senhor,
que anteriormente eram tidos por não crentes, e que depois passaram
a acreditar, podem ser chamados irmãos do Senhor. Possivelmente, o caso
foi que um dos irmãos acreditou imediatamente enquanto os outros não
acreditaram senão muito depois, e que uma Maria era a mãe de
Tiago e José, chamada "Maria de Cléofas", que é a
mesma dita esposa de Alfeu, e a outra, a mãe Tiago o menor. De qualquer
modo, se ela (esta última) fosse a mãe do Senhor, São
João teria lhe concedido seu sublime título, como em todos os
demais lugares, e não teria passado uma impressão errônea,
chamando-a mãe de outros filhos. Mas neste ponto não desejo arguir
a favor ou contra a suposição de que Maria, a esposa de Cléofas,
e Maria, a mãe de Tiago e José, eram mulheres diferentes, uma
vez que está claramente entendido que Maria, a mãe de Tiago e
José não era a mesma pessoa que a mãe do Senhor.
Como, então - pergunta Helvídio - explica você que eram
chamados irmãos do Senhor aqueles que não eram seus irmãos?
Mostrarei como.
Na Sagrada Escritura há quatro espécies de irmãos: pela
natureza, pela raça, pelo parentesco e pelo amor.
Exemplos de irmãos pela natureza foram Esaú e Jacob, os doze
patriarcas, André e Pedro, Tiago e João.
Irmãos de raça, eram todos os judeus que assim se chamavam um
ao outro, como no Deuteronómio: "Se teu irmão, um homem
hebreu, ou uma mulher hebreia, te for vendida, ele servirá por seis
anos; então, no sétimo ano, deixarás que ele se vá livre".
E antes, no mesmo livro: "Deverás de qualquer maneira fazê-lo
teu rei aquele que o Senhor teu Deus escolher: um dentre teus irmãos
deverá ser feito teu rei; não porás um estrangeiro acima
de ti, que não é teu irmão". E de novo: "Não
deverás ver o boi ou a ovelha de teu irmão se extraviar e ficares
omisso; deverás com segurança levá-los de novo para teu
irmão. E se teu irmão não morar perto de ti, ou se não
o conheces, então deves trazê-los para tua casa, e ficarão
contigo até que teu irmão venha procurá-los, e tu deves
devolvê-los a ele de volta". E o Apóstolo Paulo diz: "Desejaria
eu mesmo ser reprovado por Cristo pela salvação de meus irmãos,
meus próximos pela carne, que são os israelitas".
E ainda mais: são chamados irmãos por parentesco aqueles que
são de uma família, que é pátrio, que corresponde à palavra
latina "paternidade", porque de uma única raiz procede uma
numerosa progênie. No Génese, lemos: "E Abraão disse
a Lot: 'Que não haja luta, eu te peço, entre mim e ti, e entre
meus pastores e os teus, porque somos irmãos'". E de novo: "Assim
Lot escolheu para si toda a planície do Jordão, e se direccionou
para leste. E eles se separaram, um irmão do outro". Certamente
Lot não era irmão de Abraão, mas o filho do irmão
Aram de Abraão. Porque Terah gerou Abraão, Nahor e Arão.
E Arão gerou Lot. De novo, lemos: "E Abraão tinha setenta
e cinco anos quando partiu de Haram. E Abraão levou Sarai sua esposa,
e Lot, filho de seu irmão".
Mas se você (Helvídio) ainda duvida que um sobrinho possa ser
chamado filho, permita-me dar-lhe um outro exemplo: "E quando Abraão
ouviu que seu irmão fora feito escravo, tomou seus experimentados homens,
nascidos em sua casa, trezentos e dezoito". E depois de descrever o ataque
e o massacre noturno ele acrescenta: "E trouxe de volta todos os bens,
assim como seu irmão Lot". Que isso seja suficiente como prova
de minha afirmação. Mas por medo, você pode levantar alguma
objecção cavilosa, e se contorcer em seu aperto como uma cobra;
assim devo imobilizá-lo rapidamente com as garantias de provas para
fazê-lo parar de sibilar e murmurar, porque sei que você gostaria
de dizer que está baseado não tanto na verdade da Escritura mas
em complicados argumentos.
Jacob, o filho de Isaac e Rebeca, quando por medo da perfídia de seu
irmão tinha ido para a Mesopotâmia, retirou-se para perto [de
Labão], rolou a pedra da tampa do poço e bebeu da fonte de Labão,
irmão de sua mãe. "E Jacob beijou Raquel, ergueu sua voz
e chorou. E Jacob disse a Raquel que ele era irmão de seu pai, que era
filho de Rebeca". Aqui está um exemplo da regra já referida,
pela qual um sobrinho é chamado de irmão. E mais: "Labão
disse a Jacob: 'Porque tu és meu irmão, poderias doravante trabalhar
para mim sem pagamento? Diga-me qual o teu propósito'". E assim,
quando ao fim de 12 anos, sem conhecimento de seu tio e acompanhado por suas
esposas e filhos estava retornando para sua terra, quando Labão os alcançou
na montanha de Gilead e não conseguiu encontrar os ídolos que
Raquel escondera em sua bagagem, Jacob fez uma pergunta a Labão: "Qual é minha
transgressão? Qual é meu pecado, para que tu me venhas tão
irado e me persigas? Procuraste tudo em minhas bagagens! O que encontraste
em todos meus utensílios? Digas aqui, irmãos perante irmãos,
para que eles julguem a nós dois".
Diga-me [Helvídio] quem são esses irmãos de Jacob e Labão
que estão aqui presentes? Esaú, irmão de Jacob, certamente
não estava lá, e Labão, o filho de Bethuel, não
tinha irmãos, embora tivesse uma irmã, Rebeca.
Capítulo XVII
Inumeráveis exemplos da mesma espécie podem ser vistos nos Livros
Sagrados.
Mas, para abreviar, volto à última das quatro espécies
de irmãos, aqueles, esclareço, que são irmãos por
afeição, e estes novamente são de duas espécies:
aqueles por um relacionamento espiritual e aqueles por um relacionamento geral.
Digo espiritual porque todos nós cristãos somos chamados irmãos,
como no verso: "Veja como é bom e agradável para os irmãos
viverem juntos na unidade". E em outro Salmo, o Salvador diz: "Eu
enumerarei teu nome entre meus irmãos". E, em outro lugar: "Vá a
meus irmãos e diz-lhes..."
Eu disse - por relacionamento geral - porque nós somos todos filhos
de um mesmo Pai, há como um penhor de irmandade entre nós todos. "Dizei àqueles
que vos odiarem:" - diz o profeta - "vós sois nossos irmãos".
E o Apóstolo escrevendo aos Coríntios: "Se algum homem que é chamado
irmão for um fornicador, ou avarento, ou idólatra, ou caluniador,
ou beberrão, ou autor de extorsões, com alguém assim,
não se deve comer".
Agora eu pergunto à que classe você considera que devem pertencer
os irmãos do Senhor, no Evangelho. Eles são irmãos por
natureza, você responde. Mas a Escritura não diz isso. Não
os chama nem filhos de Maria, nem de José. Poderíamos dizer que
eles eram irmãos pela raça? No entanto, seria absurdo supor que
uns poucos judeus fossem chamados irmãos quando todos os judeus daquele
tempo poderiam, a esse título, reivindicar o nome. Eram eles irmãos
pela virtude de intimidade estreita e de união de coração
e pensamento? Se eram assim, quais eram exactamente seus irmãos mais
do que os apóstolos que receberam sua instrução privada
e eram chamados por Ele Sua mãe e Seus irmãos? Novamente, se
todos os homens, como visto, eram seus irmãos, seria loucura dar uma
mensagem especial: "Vede, seus irmãos o procuram" porque todos
os homens semelhantemente mereceriam esse nome.
A única alternativa é adoptar a explicação anterior
e considerar que são chamados irmãos em virtude do vínculo
de parentesco, não de amor e simpatia, nem por prerrogativa de raça,
nem pela natureza. Exactamente como Lot foi chamado irmão de Abraão,
e Jacob, de Labão, exactamente como as filhas de Zelophehad receberam
um lote entre seus irmãos, exactamente como o próprio Abraão
tinha a esposa Sarai por sua irmã, porque ele diz: "Ela é de
facto minha irmã, por lado de pai, não pelo lado da mãe" o
que quer dizer, ela era filha de seu irmão e não de sua irmã.
De outro modo, o que diremos de Abraão, um homem justo, falando que
a esposa era filha de seu próprio pai?
A Escritura, relatando a história dos homens nos tempos primitivos,
não ultraja nossos ouvidos falando da amplitude em termos expressos,
mas prefere deixá-la ser inferida pelo leitor. Deus mais tarde aplicou
a sanção de lei à proibição, estabelecendo: "Quem
toma sua irmã, filha de seu pai, ou de sua mãe, e mostra sua
nudez, comete abominação, deverá ser morto. Aquele que
descobre a nudez de sua irmã, deverá pagar seu pecado".
Capítulo XVIII
Há coisa que, em sua extrema ignorância, você nunca leu
e, portanto, você negligenciou toda a imensidade da Escritura e usou
sua maldade para ultrajar a Virgem, como o homem da história que sendo
desconhecido de todo mundo e achando que poderia tramar um mau ato pelo qual
ganhasse renome, incendiou o templo de Diana; e quando ninguém revelou
o acto sacrílego, diz-se que ele próprio apareceu e se proclamou
como aquele que nele pusera fogo. Os administradores de Éfeso ficaram
curiosos em saber o que o levara a agir de tal modo, quando então ele
respondeu que se não tinha fama por boas obras, todos poderiam lhe dar
crédito por uma má. A história grega relata o incidente.
Mas você fez pior. Você colocou fogo no templo do corpo do Senhor,
você aviltou o santuário do Espírito Santo, do qual se
propôs a fazer gerar um grupo de quatro irmãos e uma porção
de irmãs. Numa palavra, juntando-se ao coro dos judeus, você diz: "Não é este
o filho do carpinteiro Não é sua mãe chamada Maria? E
seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs
não moram todas connosco?". A palavra "todas" não
seria usada se não houvesse um grande número delas. Rogo-te:
diga-me quem, antes de você surgir, tinha conhecimento desta blasfémia?
Quem imaginou essa teoria digna de dois centavos? Você obteve seu propósito
e se tornou notório por um crime. Pois eu mesmo que sou seu oponente,
embora vivamos na mesma cidade, eu não o conheço como o autor
disso, não sei se você é branco ou negro.
Omito as faltas de dicção que abundam em todos os livros que
escreveu. Não digo nada sobre sua introdução absurda.
Bons céus! Eu não procuro eloquência, embora você mesmo
não a tenha; você contou para isso com a ajuda de seu irmão,
Cratério. Eu não procuro graça e estilo, mas busco pureza
de alma, porque entre cristãos é o maior dos solecismos e dos
vícios de estilo fundamentar algo na palavra ou acção.
Chego à conclusão de meu argumento. Concordarei com você em
que eu não ganhei nada; e você se encontrará num dilema.
É
claro que os irmãos de Nosso Senhor usaram o nome da mesma maneira como
José era chamado seu pai: "Eu e teu pai te procurávamos
preocupados"; foi Sua mãe que disse isso, não os judeus.
O Evangelista relata que Seu pai e Sua mãe ficaram admirados com as
coisas que se falavam a Seu respeito, e há uma passagem semelhante,
que já citamos, na qual José e Maria são chamados Seus
pais. Sabendo que você tem sido louco o bastante para se persuadir que
os manuscritos gregos estão corrompidos, agora você talvez alegue
a diversidade de interpretações.
Então procuro o Evangelho de João e ali está claramente
escrito: "Filipe encontrou Natanael, e lhe disse, nós encontramos
aquele de quem Moisés na lei, e os profetas escreveram, Jesus de Nazaré,
o filho de José". Você encontrará certamente isso
em seu manuscrito. Agora me diga: como Jesus é filho de José quando
está claro que Ele fora gerado pelo Espírito Santo? Era José seu
verdadeiro pai? Obtuso como você é, não se aventurará a
dizer isso. Era seu suposto pai? Se era, que a mesma regra que você aplica
a José, seja aplicada àqueles que eram chamados irmãos,
assim como você chama José de pai.
Parte IV: O estado virginal é superior
ao estado matrimonial
Capítulo XIX
Agora que ultrapassei as pedras e encolhos, devo pôr-me ao largo e ir
a toda velocidade para chegar ao destino. Você, sentindo-se uma pessoa
sem conhecimentos, usou Tertuliano como sua testemunha e citou as palavras
de Vitorino, bispo de Perávio. De Tertuliano não direi senão
que não pertenceu à Igreja. Mas com respeito a Vitorino, afirmo
que já ficou provado pelo Evangelho - que ele falou dos irmãos
de Nosso Senhor não como sendo filhos de Maria, mas irmãos no
sentido que expliquei, ou seja, irmãos sob o ponto de vista de parentesco,
não de natureza.
Estamos, contudo, desperdiçando nosso percurso com ninharias e deixando
a fonte da verdade, estamos seguindo insignificantes pontos de opinião.
Não deveríamos arrolar contra você toda a série
de escritores antigos? Inácio, Policarpo, Irineu, Justino Mártir
e muitos outros homens apostólicos e eloquentes, que expuseram as mesmas
explicações contra Ebião, Theodoto de Bizâncio e
Valentino, escreveram volumes repletos de conhecimentos. Se você alguma
vez lesse o que eles escreveram, você se tornaria um homem sábio.
Mas eu penso que é melhor refutar brevemente cada ponto do que prolongar
meu livro por uma extensão indevida.
Capítulo XX
Agora dirijo meu ataque contra a passagem na qual, desejando mostrar seu talento
você faz uma comparação entre virgindade e casamento. Eu
não poderia deixar de rir, e penso no provérbio: viu você alguma
vez uma dança cautelosa?
Você pergunta: "São as virgens melhores do que Abraão,
Isaac e Jacob, que foram casados? Não são as crianças
diariamente moldadas pelas mãos de Deus no útero de suas mães?
E se assim é, somos constrangidos a nos ruborizarmos pelo pensamento
de Maria tendo um marido depois do parto? Se julgam que há alguma desgraça
nisto, não deviam coerentemente acreditar que Deus nasceu da Virgem
por parto normal. Porque de acordo com esses, há mais desonra numa virgem
dando à luz a Deus pelos órgãos geradores, do que numa
virgem que se juntou a seu próprio esposo depois que deu à luz".
Acrescente, se quiser, Helvídio, as outras humilhações
da natureza, o útero de nove meses se tornando cada vez maior, a doença,
o parto, o sangue, os cueiros. Imagine você mesmo o menino envolto na
placenta. Imagine a dura manjedoura, o choro do menino, a circuncisão
no oitavo dia, o tempo de purificação, de modo que possa ficar
comprovado que tudo era impuro. Não enrubescemos, você não
nos impõe silêncio. Maior humilhação Ele sofreu
por mim, a maior que o atingiu. E quando você tiver dado todos os detalhes,
não estará apto a apontar nada mais vergonhoso do que a cruz
que confessamos, na qual acreditamos e pela qual triunfamos sobre todos nossos
inimigos.
Capítulo XXI
Mas como não negamos o que está escrito, assim também
rejeitamos o que não está escrito. Acreditamos que Deus nasceu
de uma Virgem, porque lemos assim. Não acreditamos que Maria teve união
marital depois que deu à luz porque não lemos isso. Nem afirmamos
tal para condenar o casamento, porque a virgindade é o fruto do casamento;
mas porque quando estamos tratando de santos não devemos julgar apressadamente.
Pois se adoptássemos a possibilidade como padrão de julgamento,
poderíamos sustentar que José teve várias esposas porque
Abraão teve, e também Jacob, e que aqueles que eram irmãos
do Senhor nasceram daquelas esposas, uma criação imaginária
que alguns sustentam com uma temeridade que nasce da audácia e da piedade.
Você diz que Maria não continuou virgem. Eu brado ainda mais que
José, ele mesmo, aceitou que Maria era virgem, de modo que de um casamento
virgem nasceu um filho virgem. Porque se, como um homem santo, ele não
se apresentou com a acusação de fornicação, e está escrito
que ele não teve outra esposa, mas foi o guardião de Maria, aquela
que foi tida por sua esposa mas não ele por seu marido; a conclusão é que
aquele que foi julgado digno de ser chamado pai do Senhor, permaneceu casto.
Capítulo XXII
E agora que vou fazer uma comparação entre virgindade e casamento,
rogo a meus leitores para não suporem que louvando a virgindade, tenho
em menor grau o casamento, e discrimino os santos do Antigo Testamento com
relação àqueles do Novo, isto é, aqueles que tinham
esposas daqueles que se mantiveram livres dos laços de mulheres; antes,
penso que de acordo com a diferença de tempo e circunstâncias,
uma regra foi aplicada aos primeiros, uma outra a nós, sobre quem sobrevirá o
fim do mundo.
Tanto que continua vigorando a lei: "Sede férteis e multiplicai-vos
e povoai a terra"; e: "Amaldiçoada é a mulher estéril
que não gerou semente em Israel"; elas todas que casaram e foram
dadas em matrimónio, deixaram pai e mãe, e se tornaram uma só carne.
Mas de repente com a força do trovão se fizeram ouvir essas palavras: "O
tempo está se acabando, em que doravante aqueles que têm esposas
sejam como se não tivessem"; aderindo ao Senhor, nós somos
feitos um espírito com Ele. E por quê?
Porque "aquele que é solteiro está preocupado com as coisas
do Senhor, de modo que poderá agradar ao Senhor; mas aquele que é casado
está preocupado com as coisas do mundo, do modo como agradará a
sua esposa. E aqui está a diferença também entre a esposa
e a virgem. Aquela que é solteira está preocupada com as coisas
do Senhor, porque será santa tanto no corpo como no espírito;
mas aquela que é casada, está preocupada com as coisas do mundo,
do modo como agradará a seu marido".
Por que você sofisma? Por que resiste? O vaso de eleição
disse isso. Disse-nos que há uma diferença entre a esposa e a
virgem. Observe qual deva ser a felicidade daquele estado no qual mesmo a distinção
de sexo desaparece. A virgem não é mais chamada mulher. "Aquela
que é solteira está preocupada com as coisas do Senhor, de modo
que é santa no corpo e no espírito".
A virgem é definida como aquela que é santa no corpo e no espírito,
porque não é bom ter uma carne virgem se a mulher se põe
casada no espírito. "Mas aquela que é casada está preocupada
com as coisas do mundo, do modo como agradará a seu marido". Julga
você que não há diferença entre uma que gasta seu
tempo em oração e jejuns daquela que se sente impelida, ao aproximar-se
seu marido, a arranjar sua aparência, andar com passos afetados, e demonstrar
actos de carinho?
O objectivo da virgem é aparecer menos faceira; ela quer se guardar
de modo a esconder suas atracções naturais. A mulher casada tem
seu pincel preparado ante seu espelho, e em desacordo com seu Criador, esforça-se
para adquirir algo mais do que sua beleza natural. Então lhe chegam
as conversas de seus filhos, o barulho da casa, as crianças buscando
sua palavra e pedindo seus beijos, a lista das despesas, o cuidado para acertar
as despesas. De um lado você a vê na companhia dos cozidos, cercada
de gritos e preparando o alimento; você ali ouve o barulho de uma multidão
de fiandeiras. Enquanto isso, chega uma mensagem que o marido e seus amigos
estão chegando. A esposa, como uma andorinha, voa por toda a casa. Ela
deve cuidar de todas as coisas. Está o sofá arrumado? Está o
piso varrido? Estão as flores nas jarras? E o jantar está pronto?
Diga-me, rogo-lhe, onde entre tudo isso há lugar para pensar em Deus?
São essas casas tranquilas? Onde há as batidas do tambor, o barulho
e a algazarra do órgão e do alaúde, o tinir dos címbalos,
pode se encontrar alguma preocupação com o temor de Deus? O parasita é repreendido
e se sente orgulhoso da honra. Entram depois as vítimas meio despreparadas
para as paixões, uma referência para todo olhar lúbrico.
A infeliz esposa ou deve achar prazer neles e perecer, ou ficar desgostosa
e provocar seu marido. Disso surge a discórdia, a semente conspiratória
do divórcio.
Ou suponha que você encontre uma casa onde essas coisas são desconhecidas,
o que acontece em pequena proporção! Contudo, mesmo ali, o desempenho
do dono da casa, a educação das crianças, as necessidades
do marido, a correcção dos servos, não falham em afastar
a mente do pensamento de Deus. "Deixou de ficar com Sara como se fica
com as mulheres" - assim diz a Escritura, e mais tarde Abraão recebeu
a ordem: "Presta atenção em tudo o que Sara te disser".
[Porque] ela não está tomada de ansiedades e dor de parto e,
tendo passado pela mudança de vida [sexual], deixou de exercer as funções
de uma mulher, estando liberta do esquecimento de Deus; não tem desejo
por seu marido, mas, pelo contrário, seu marido se torna sujeita a ela,
e a voz do Senhor lhe ordena: "Presta atenção em tudo o
que Sara te disser". Então, começam a ter tempo para rezar.
Porque enquanto demorou a ser pago o dever do matrimónio, a determinação
de rezar foi negligenciada.
Capítulo XXIII
Não nego que se encontram mulheres santas entre as viúvas e aquelas
que têm marido; mas tornam-se santas logo que deixam de ser esposas,
ou se no estrito dever do matrimónio imitam a castidade virginal. O
Apóstolo, como se Cristo falasse por sua boca, brevemente deu testemunha
disso quando disse: "Aquela que é solteira está preocupada
com as coisas do Senhor, como poderá agradar ao Senhor; mas aquela que é casada
está preocupada com as coisas do mundo, como poderá agradar a
seu marido".
Ele nos deixa ao livre exercício de nossa razão a esse respeito.
Não determina obrigação a ninguém nem induz alguém
em cilada; somente persuade àquilo que é próprio quando
deseja que todos os homens sejam como ele mesmo. Não emitiu, é verdade,
um mandamento do Senhor a favor da virgindade, porque essa graça sobrepuja
o poder do homem desassistido, e seria usar um ar de imodéstia forçar
os homens a se porem a voar em face de sua natureza, e dizer em outras palavras: "Quero
que você seja como são os anjos do céu". É essa
angélica pureza que assegura à virgindade a mais alta recompensa,
e o Apóstolo poderia parecer desprezar um sistema de vida que não é culposo.
Não obstante, no contexto a seguir diz: "Mas presto meu julgamento
como alguém que obteve misericórdia do Senhor para ficar fiel.
Penso, portanto, que isso é bom em razão da actual aflição,
ou seja, que é bom para um homem ser como ele é". O que
quer dizer com "a actual aflição"?
"
Haverá aflição para aqueles que tiverem crianças
e para aquelas que amamentarem naqueles dias!" A razão por que
a madeira cresce é que poderá ser cortada. O campo é semeado
porque poderá ser segado. O mundo está já repleto, e a
população está demasiado grande para a terra. A cada dia
somos dizimados pela guerra, levados pelas doenças, tragados pelos naufrágios,
embora continuemos a levar alguém a juízo por causa dos muros
de nossa propriedade.
É
somente uma adição à regra geral que é feita por
aqueles que seguem o Cordeiro, e que não desvestiram seus ornamentos,
que continuam em seu estado de virgindade. Preste atenção ao
significado de desvestir. Eu não me aventuro a explicá-lo, por
medo de que Helvídio possa se tornar abusivo.
Concordo com você, quando diz que algumas virgens não são
senão mulheres de taverna; digo ainda mais, que mesmo o pecado do adultério
pode ser encontrado entre elas, e você ficará sem dúvida
mais surpreso de ouvir que alguns do clero são taberneiros e alguns
monges não são castos. Quem não entende logo que uma mulher
de taverna não persistirá virgem, nem adúltero um monge,
nem taberneiro um clérigo? Exigiremos virgindade se a virgindade corrompida é um
pecado?
De minha parte, me omitindo das outras pessoas, e tratando dos castos, afirmo
que aquela que trabalha como vendeira, embora sem provas, poderá ser
virgem no corpo, porém não mais será casta em espírito.
Parte V: Conclusão
Capítulo XXIV
Eu me tornei retórico e agi um pouco como orador de plataforma. A isso
me levou você, Helvídio; porque, da forma lúcida como brilha
o Evangelho actualmente, você quer que se dê uma glória
igual à virgindade e ao estado matrimonial. E porque penso que, sentindo
a verdade muito forte, você virá aviltar minha vida e abusar de
meu carácter (este é o modo das mulheres fracas cochicharem nos
cantos quando são repreendidas por seus senhores), vou me antecipando
a você:
- Asseguro que darei atenção às suas injúrias como
a uma elevada distinção, uma vez que os mesmos lábios
que me atacam aviltaram Maria, e eu - um servo do Senhor - sou favorecido com
a mesma brava eloquência de Sua mãe.
Tratado de São Jerónimo contra Helvídio
Arcebispo Primaz Katholikos
S.B. Dom ++ Paulo Jorge de Laureano – Vieira y Saragoça
(Mar Alexander I da Hispânea)
Última actualização deste
Link em 01 de Outubro de 2011