A Unidade da Igreja
I Parte:
Vigiai, o inimigo vem disfarçado
"Vós sois o sal da terra" (Mt. 5, 3), diz o Senhor, e ainda nos
recomenda que sejamos simples pela inocência e prudentes na simplicidade
(Mt. 10, 16). Nada pois é mais importante para nós, irmãos
dilectíssimos, quanto vigiar com todo o cuidado para descobrir logo
e, ao mesmo tempo, compreender e evitar as ciladas do inimigo traiçoeiro.
Sem isso, embora sejamos revestidos de Cristo (Rom. 13, 14; Gál. 3,
27), que é a Sabedoria de Deus Pai (1 Cor. 1, 24), nos mostraríamos
menos sábios na defesa da salvação.
De facto, não devemos temer só a perseguição e
os vários ataques que se desencadeiam abertamente para arruinar e abater
os servos de Deus. Quando o perigo é manifesto, a cautela é mais
fácil. O nosso espírito está mais pronto para lutar contra
um adversário abertamente declarado. É mais necessário
ter medo e guardar-nos do inimigo que penetra às escondidas, e se vai
insinuando oculta e tortuosamente com falsas imagens de paz. Bem lhe convém
o nome de serpente! Essa foi sempre a sua astúcia, esse foi sempre o
tenebroso e pérfido engano com que tenta seduzir o homem.
Já no começo do mundo mentiu e enganou as almas crédulas
e ingénuas (dos nossos primeiros pais), acariciando-as com palavras
falazes (Gén. 3, 1ss). Igualmente ousou tentar a Cristo, Nosso Senhor,
e aproximou-se dele insinuando, disfarçando, mentindo. Foi contudo desmascarado
e repelido. Desta vez, foi derrotado porque foi reconhecido e descoberto (Mt.
4, 1ss).
Acima de tudo: cumprir os mandamentos de Cristo
Sirvam-nos estes exemplos. Evitemos o caminho do homem velho, para não
cair no laço da morte. Sigamos as pisadas de Cristo vencedor, para que,
usando cautela diante do perigo, alcancemos a verdadeira imortalidade.
Mas, como poderíamos chegar à imortalidade, sem observar os mandamentos
de Cristo? São eles os únicos meios para combater e vencer a
morte. Ele avisa-nos: "Se queres chegar à vida, observa os mandamentos" (Mt.
19, 17), e, de novo: "Se fizerdes o que vos mando, já não
vos chamarei servos, mas amigos" (Jo. 15, 15).
Esses são os que ele diz serem fortes e firmes. Esses têm fundamento
sólido na pedra, e gozam de inabalável resistência contra
todas as tempestades e as rajadas do século. "Quem ouve as minhas
palavras - diz ele - e as cumpre é semelhante ao homem sábio
que construiu a sua casa sobre a pedra. Desceu a chuva, desabaram as correntes,
sopraram os ventos, batendo contra aquela casa, e ela não caiu porque
fora fundada na pedra" (Mt. 7, 25).
Devemos, pois, prestar atenção às suas palavras, devemos
aprender e praticar o que ele nos ensinou e o que fez. Como poderia asseverar
que acredita em Cristo aquele que não cumpre o que Cristo mandou? E
como conseguirá o prémio da fé aquele que recusa a fé no
que foi mandado? Fatalmente ele irá vacilando, à ventura, e,
arrastado pelo espírito do erro, será varrido como pó agitado
pelo vento.
Nunca poderão conduzir à salvação os passos daquele
que não adere à verdade da única via que salva.
O demónio é o
autor dos cismas
Devemos pois guardar-nos, irmãos caríssimos, não só dos
males que aparecem claramente como tais, mas também, como já disse,
daqueles que nos enganam pela subtileza da astúcia e da fraude.
Pois bem, vede agora a que ponto chega a astúcia e a subtileza do inimigo.
Veio Cristo ao mundo. Veio a luz para os povos e resplandeceu para a salvação
dos homens (Lc. 2, 32). Com isto ficou descoberto e derrotado o antigo adversário.
Os surdos abrem os ouvidos às graças espirituais, os cegos abrem
os olhos a Deus, os enfermos ficam sãos ao ganhar a saúde eterna,
os coxos correm à Igreja, os mudos soltam as suas línguas na
oração (Mt. 11, 5; Lc. 7, 22). Aumenta dia a dia o povo fiel,
abandonam-se os velhos ídolos, tornam-se desertos os seus templos.
Então, o que faz o malvado? Inventa nova fraude para enganar os incautos
com o próprio título do nome cristão. Introduz as heresias
e os cismas para derrubar a fé, para contaminar a verdade e dilacerar
a unidade. Assim, não podendo mais segurar os seus na cegueira da antiga
superstição, rodeia-os, condu-los ao erro por novos caminhos.
Rouba à Igreja os homens e, fazendo-lhes acreditar que alcançaram
a luz e subtraíram-se à noite do século, envolve-os ainda
mais nas trevas: não observam a lei do Evangelho de Cristo e se dizem
cristãos, andam na escuridão e pensam que possuem a luz, nisto
são iludidos e lisonjeados pelo adversário, que, como diz o Apóstolo, "se
transfigura em anjo de luz" (2 Cor. 11, 14).
Disfarça os seus ministros em ministros de justiça, ensina-lhes
a dar à noite o nome de dia, à perdição o nome
de salvação, ensina-lhes a propalar o desespero e a perfídia
sob o rótulo da esperança e da fé, a apregoar o Anticristo
com o nome de Cristo. Mestres na arte de mentir, diluem com as suas subtilezas
toda a verdade.
Isto acontece, irmãos caríssimos, porque não se bebe à fonte
mesma da verdade, não se busca aquele que é a Cabeça,
nem se observam os ensinamentos do Mestre celestial.
"Tu és Pedro e sobre esta pedra...”
Quem presta atenção a estes ensinamentos não precisa de
longo estudo, nem de muitas demonstrações. A prova da nossa fé é fácil
e compendiosa.
Assim fala o Senhor a Pedro: "Eu te digo que tu és Pedro e sobre
esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas dos infernos não a
vencerão. Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus e tudo o que
ligares na terra será ligado também nos céus, e tudo o
que desligares na terra será desligado também nos céus" (Mt.
16, 18-19).
Sobre um só edificou a sua Igreja. Embora, depois da sua ressurreição,
tenha comunicado igual poder a todos os Apóstolos, dizendo: "Como
o Pai me enviou, eu vos envio a vós. Recebei o Espírito Santo,
a quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados, a quem os retiverdes
ser-lhe-ão retidos" (Jo. 20, 21-23).
É
verdade que os demais Apóstolos eram o mesmo que Pedro, tendo recebido
igual parte de honra e de poder, mas a primeira urdidura começa pela
unidade a fim de que a Igreja de Cristo aparecesse uma só.
O Espírito Santo, falando na pessoa do Senhor, designa esta Igreja única
quando diz no Cântico dos Cânticos: "Uma só é a
minha pomba, a minha perfeita, única filha da sua mãe e sem igual
para a sua progenitora" (Cant. 6, 9).
Aquele que não guarda esta unidade poderá pensar que ainda guarda
a fé? Aquele que resiste e faz oposição à Igreja
poderá confiar que ainda está na Igreja?
Paulo, apóstolo inculca o mesmo ensinamento e mostra o sacramento da
unidade, dizendo: “Um só corpo e um só espírito,
uma só esperança da vossa vocação, um Senhor, uma
fé, um baptismo, um só Deus” (Ef. 4, 4-5).
E, depois da ressurreição, diz ao mesmo: "Apascenta as minhas
ovelhas" (Jo. 21, 17). Sobre o seu testemunho constrói a Igreja
e manda-lhe que apascente as suas ovelhas.
É
verdade que os demais Apóstolos eram o mesmo que Pedro, mas o primado é conferido
a Pedro para que fosse evidente que há uma só Igreja e uma só cátedra.
Todos são pastores, mas é anunciado um só rebanho, que
deve ser apascentado por todos os Apóstolos em unânime harmonia.
Aquele que não guarda esta unidade, proclamada também por Paulo,
poderá pensar que ainda guarda a fé? Aquele que abandona a cátedra
de Pedro, sobre o qual foi fundada a Igreja, poderá confiar que ainda
está na Igreja?
A Igreja única e universal: muitos são
os raios, uma a luz...
Esta unidade devemos guardar e exigir com firmeza, especialmente nós,
bispos, que na Igreja presidimos, para dar prova de que o episcopado também é um
e indiviso. Ninguém engane os irmãos com mentiras, ninguém
corrompa a pureza da fé com pérfidos desvios. Uma só é a
ordem episcopal e cada um de nós participa dela completamente. Mas a
Igreja também é uma, embora, em seu fecundo crescimento, se vá dilatando
numa multidão sempre maior.
Assim muitos são os raios do sol, mas uma só é a luz,
muitos os ramos de uma árvore, mas um só é o tronco preso à firme
raiz. E quando de uma única nascente emanam diversos riachos, embora
corram separados e sejam muitos, graças ao copioso caudal que recebem,
todavia permanecem unidos na fonte comum.
Se pudéssemos separar o raio do corpo do sol, na luz assim dividida
já não haveria unidade. Quando se quebra um ramo da árvore,
o ramo quebrado já não pode vicejar. Se separamos um regato da
fonte, ele secará.
Igualmente a Igreja do Senhor, resplandecente de luz, lança seus raios
no mundo inteiro, mas a sua luz, difundindo-se em toda a parte, continua sendo
a mesma e, de modo nenhum, é abalada a unidade do corpo.
Na sua exuberante fertilidade, estende os seus ramos em toda a terra, derrama
as suas águas em vivas torrentes, mas uma só é a cabeça,
uma a fonte, uma a mãe, tão rica nos frutos da sua fecundidade.
Do parto dela nascemos, é dela o leite que nos alimenta, dela o Espírito
que nos vivifica.
Única Esposa de Cristo: não pode ter Deus por Pai, quem não
tem a Igreja por mãe.
A Esposa de Cristo não pode tornar-se adúltera, ela é incorruptível
e casta (Cf. Ef. 5, 24-31). Conhece só uma casa, observa, com delicado
pudor, a inviolabilidade de um só tálamo. É ela que nos
guarda para Deus e torna participes do Reino os filhos que gerou.
Aquele que, afastando-se da Igreja, vai juntar-se a uma adúltera, fica
privado dos bens prometidos à Igreja. Quem abandona a Igreja de Cristo
não chegará aos prémios de Cristo. Torna-se estranho,
torna-se profano, torna-se inimigo.
Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe.
Como ninguém se pode salvar fora da arca de Noé, assim ninguém
se salva fora da Igreja (nota: aqui Cipriano fala dos obstinados que, conhecendo
a verdade, insistem, por ódio ou comodismo pagão, em se apartar
da Igreja de Cristo).
O Senhor alerta-nos e diz: "Quem não está comigo está contra
mim, quem comigo não recolhe, dissipa" (Mt. 12, 30). Quem rompe
a paz e a concórdia de Cristo trabalha contra Cristo. Quem faz colheita
alhures, fora da Igreja, esse dissipa a Igreja de Cristo.
Diz ainda o Senhor: "Eu e o Pai somos um" (Jo. 10, 30), e do Pai,
do Filho e do Espírito Santo está escrito: "Estes três
são um" (1 Jo. 5, 7). Como poderá alguém pensar que
esta unidade da Igreja, decorrente da própria firmeza da unidade divina,
e tão conforme com este celeste mistério, pode ser rompida e
sacrificada ao arbítrio de vontades opostas? Quem não observa
esta unidade não observa a lei de Deus, não observa a fé do
Pai e do Filho, não possui nem a vida, nem a salvação.
A túnica inconsútil de Cristo
Este sacramento da unidade, este vínculo de concórdia inviolada
e sem rachadura, é figurado também pela túnica do Senhor
Jesus Cristo. Como lemos no Evangelho, ela não foi dividida, nem, de
modo algum, rasgada, mas sorteada. Isto quer dizer que quem toma a veste de
Cristo e tem a dita de se revestir do próprio Cristo (Rom. 13, 14; Gál.
3, 27), deve receber a sua túnica toda inteira e possuí-la intacta
e sem divisão.
Diz a Divina Escritura: "Quanto à túnica, visto que, desde
a parte superior, era feita de uma única tecedura, sem costura alguma,
disseram: não a dividamos, mas lancemos-lhe a sorte para ver a quem
toca" (Jo. 19, 23-24). A unidade da túnica derivava da sua parte
superior - em nosso caso, do céu e do Pai celeste. Aquele que a recebia
e guardava não podia rasgá-la de modo nenhum, de fato ela era
resistente e sólida por ser constituída de um modo inseparável.
Não pode possuir a veste de Cristo aquele que rasga e divide a Igreja
de Cristo.
O contrário aconteceu à morte de Salomão, quando o seu
reino e o povo deviam ser divididos. O profeta Aías, indo ao encontro
do rei Jeroboão no campo, cortou o seu manto em doze partes, dizendo: "Toma
para ti dez partes, porque assim diz o Senhor: eis que eu divido o reino da
mão de Salomão, a ti darei dez ceptros e dois ficarão
para ele, por causa do meu servo David e de Jerusalém, a cidade eleita
em que eu pus o meu nome" (1 Rs. 11, 30-36). Para separar as doze tribos
de Israel, o profeta dividiu o seu manto.
Mas o povo de Cristo não pode ser dividido, e por isso a sua túnica,
que era um todo feito de uma só tecedura, não foi dividida por
aqueles que a deviam possuir. Ficando uma só, bem firme na sua contextura,
ela mostra a união e a concórdia do nosso povo, isto é,
daqueles que são revestidos de Cristo. Por este sinal sagrado da sua
veste, proclamou ele a unidade da Igreja.
Figuras do Antigo Testamento: Raabe, o cordeiro pascal
Portanto quem será tão celerado e pérfido, tão
louco pelo furor da discórdia, para pensar como possível ou até para
ousar romper a unidade de Deus, a veste do Senhor, a Igreja de Cristo?
Ainda uma vez nos avisa ele no Evangelho dizendo: "E haverá um
só rebanho e um só pastor" (Jo. 10, 16). E como se pode
pensar que, num mesmo lugar, existam muitos pastores e muitos rebanhos?
O apóstolo Paulo, por sua vez, inculcando esta mesma unidade, suplica
e exorta: "Rogo-vos, irmãos, pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo,
que todos digais as mesmas coisas e não se dêem cismas entre vós.
Sede unidos no mesmo sentimento e no mesmo pensamento" (1 Cor. 1, 10)
E de novo: "Sustentando-vos mutuamente no amor, esforçando-vos
por conservar a unidade do Espírito na união da paz" (Ef.
4, 2-3).
Achas tu que alguém pode afastar-se da Igreja, fundar, a seu arbítrio,
outras sedes e moradias diversas e ainda perseverar na vida? Ouve o que foi
dito a Raabe, na qual era prefigurada a Igreja: "Recolhe teu pai, tua
mãe, teus irmãos e toda a tua família junto de ti, na
tua casa, e qualquer um que ouse sair fora da porta da tua casa, será ele
próprio culpado da sua perda" (Jos. 2, 18-19). Igualmente o sacramento
da Páscoa antiga, como lemos no Êxodo, exigia que o cordeiro,
morto como figura de Cristo, fosse comido numa só casa. Eis as palavras
de Deus: "Seja comido numa só casa, não jogueis fora da
casa carne alguma dele" (Ex. 12, 46). A carne de Cristo, o Santo do Senhor
[Nota: "Sanctum Domini" O Santo do Senhor - era como os primeiros
cristãos chamavam a Eucaristia - O Corpo e Sangue de Cristo Jesus],
não pode ser jogado fora. Para os que nEle crêem, não há outra
casa a não ser a única Igreja.
O Espírito Santo anuncia e significa esta casa, esta morada da união
dos corações, dizendo nos salmos: "Deus faz habitar na casa
aqueles que são unânimes" (Sl. 67, 7). Na casa de Deus, na
Igreja de Cristo, os moradores são unidos e perseveram na concórdia
e na simplicidade.
II Parte:
A pomba, exemplo de sociabilidade e concórdia
Por isto também o Espírito Santo desceu em forma de pomba (Mt.
3, 16; Mc. 1, 10), animal simples e alegre, sem amargura alguma de fel, incapaz
de se enfurecer; não morde, não arranha com as unhas. Prefere
as moradias dos homens e gosta de habitar numa mesma casa. Quando criam, as
pombas cuidam dos filhotes juntamente, quando viajam, voam pertinho umas das
outras. Passam o tempo em tranquilos arrulhos, manifestam a concórdia
e a paz beijando-se no rosto. Enfim, em todas as coisas seguem a lei da boa
harmonia.
Esta é a simplicidade que deve reinar na Igreja, essa a caridade que
devemos realizar: o amor fraternal imite as pombas, a mansidão e a brandura
sejam iguais às dos cordeiros e das ovelhas.
Como podem estar no coração de um cristão a ferocidade
dos lobos, a raiva dos cães, o veneno mortífero das serpentes
ou a crueldade sanguinária das feras?
Devemos alegrar-nos quando os que têm esses sentimentos separam-se da
Igreja. Assim as pombas e as ovelhas de Cristo não serão contagiadas
pela sua maldade e pelo seu veneno. Não podem conciliar-se e juntar-se
amargura e doçura, trevas e luz, chuva e céu sereno, guerra e
paz, esterilidade e fecundidade, secura e manancial, tempestade e bonança.
Não acreditem que os bons possam deixar a Igreja: não é o
trigo que o vento carrega, o furacão não arranca as árvores
que têm sólidas raízes. Ao contrário são
as palhas vazias que a tormenta agita, são as árvores vacilantes
que a força dos turbilhões abate. Contra esses o apóstolo
São João manifesta a sua repulsa, dizendo: "Saíram
do nosso meio, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos,
sem dúvida teriam ficado connosco" (1 Jo. 2, 19).
Origem e maldade das heresias
A origem de onde nasceram frequentemente e continuam nascendo as heresias é a
seguinte: há mentes perversas e sem paz, que, discordando em sua perfídia,
não podem suportar a unidade. O Senhor, por seu lado, respeita a liberdade
do arbítrio humano, permite e tolera que isto aconteça, a fim
de que o crisol da verdade purifique os nossos corações e as
nossas mentes, e, na provação, resplandeça com luz inequívoca
a integridade da fé.
O Espírito Santo previne-nos, por meio do Apóstolo: "Convém
que haja heresias para que entre vós se tornem manifestos os que resistem à prova" (1
Cor. 11, 19). Assim, aqui mesmo, antes do dia do juízo, são divididas
as almas dos justos e dos perversos e as palhas são separadas do trigo.
Esses são os que, por própria iniciativa e sem chamamento divino,
se põem a encabeçar temerários grupinhos. Contra toda
a lei da ordenação, constituem-se superiores e, sem que ninguém
lhes dê o episcopado, atribuem-se a si mesmos o nome de bispos. A eles
faz alusão o Espírito Santo, no Salmo, falando dos que estão
sentados em cátedras de pestilência, porque são peste infecciosa
da fé. Mestres na arte de corromper a verdade, eles enganam com bocas
de serpente, vomitando de suas línguas pestilentas peçonhas mortíferas.
Os seus discursos brotam como chaga cancerosa, o trato com eles deixa no fundo
de cada coração um veneno mortal.
O Baptismo cismático
Contra esses homens brada o Senhor, para afastar ou retirar deles o seu povo
desviado: "Não escuteis os sermões dos pseudo-profetas,
porque vivem iludidos pelas alucinações do seu coração.
Falam, mas não as palavras do Senhor. Aos que rejeitam a palavra de
Deus dizem eles: tereis a paz, vós e todos os que andam segundo as próprias
vontades. Não virá mal algum, ainda sobre aqueles que seguem
os erros do próprio coração. Eu não lhes falei
e eles vão "profetizando". Se tivessem atendido ao meu conselho,
ouvido as minhas palavras e as tivessem ensinado ao meu povo, eu os teria convertido
dos seus perversos pensamentos" (Jer. 23, 16-22).
E de novo fala deles o Senhor: "Abandonaram a mim, que sou a fonte da água
viva, e escavaram para si covas escuras, que nem podem dar água" (Jer.
2, 13 [Nota: Tradução literal do texto latino antigo. As versões
tiradas do hebraico dizem: "cisternas fendidas, que não retêm
a água"]).
Enquanto não pode haver senão um Baptismo, eles pensam que podem
baptizar. Abandonaram a fonte da vida e ainda prometem a graça da água
que dá a vida e a salvação. Lá os homens não
são purificados, mas, ao contrário, mais poluídos. Lá os
pecados não são perdoados, mas, antes, aumentados. Aquele nascimento
não gera filhos para Deus, mas para o demónio [Nota: Esta recusa
do baptismo dos hereges é consequência do pensamento vigente.
Este pensamento afirmava que qualquer violação na unidade da
Igreja significava perversão total da fé. Hoje, a Igreja aceita
o baptismo de algumas denominações protestantes tradicionais].
Os que pretendem nascer por meio da mentira não recebem absolutamente
as promessas da verdade. Gerados pela perfídia, não alcançam
a graça da fé. Aqueles que, no delírio da discórdia,
quebraram a paz do Senhor, não podem chegar ao prémio da paz.
"
Onde dois ou três..." (Mt. 18, 20)
Alguns enganam-se a si mesmos com uma presunçosa interpretação
das palavras do Senhor, que disse: "Onde quer que se encontrem dois ou
três reunidos em meu nome, eu mesmo estou com eles" (Mt. 18, 20).
São falsificadores do Evangelho e intérpretes mentirosos. Apegam-se
ao que é dito depois, esquecendo o que foi dito antes, lembram-se de
uma parte da frase e, astutamente, deixam do lado a outra. Assim como eles
se separaram da Igreja, do mesmo modo truncam o sentido de uma única
sentença.
De facto, o que queria dizer Nosso Senhor? Para inculcar aos seus discípulos
a união e a paz, diz ele: "Eu vos afirmo que, se dois de vós
concordarem na terra em pedir qualquer coisa, ela lhes será outorgada
por meu Pai que está nos céus" (Mt. 18, 19). E continua: "Onde
quer que se encontrem dois ou três reunidos em meu nome, eu mesmo estou
com eles", mostrando que o que mais vale na oração não é o
número dos que oram, mas a sua união de espírito.
"Se dois de vós concordarem na terra", diz ele. Antes exige a união,
põe na frente a paz: o seu primeiro e mais firme preceito é que
entre nós haja acordo. E como poderá estar de acordo com alguém
aquele que está em desacordo com o corpo da Igreja e a totalidade dos
irmãos?
Como poderão estar reunidos dois ou três em nome de Cristo, se é patente
que estão separados de Cristo e do seu Evangelho? De facto não
somos nós que nos apartamos deles, mas eles de nós. E quando,
em seguida, formando entre si vários grupos, deram origem a heresias
e cismas, abandonaram a cabeça e a fonte da verdade.
O Senhor quer falar da sua Igreja e dirige aquelas palavras àqueles
que estão na Igreja, dizendo que, se dois ou três deles estiverem
concordes, como ele ensinou e mandou, e se reunirem em um só espírito
para rezar, embora sejam só dois ou três, impetrarão da
majestade de Deus o que pedem.
"Onde quer que se encontrem reunidos em meu nome dois ou três, eu mesmo
estou com eles", quer dizer com os simples, com os pacíficos, com
os que temem a Deus e observam os seus preceitos. Com esses, ainda que não
fossem mais do que dois ou três, prometeu que estaria, assim como esteve
com os três jovens na fornalha ardente, e, porque permaneciam simples
com Deus e unidos entre si, até no meio das chamas, os animou com uma
brisa de orvalho (Dan. 3, 50).
Do mesmo modo esteve presente aos dois Apóstolos encerrados na cadeia,
porque eram simples e unânimes. Ele mesmo abriu as portas do cárcere
e os conduziu de novo à praça para que pregassem à multidão
a palavra que tão fielmente anunciavam.
Por conseguinte, quando o Senhor coloca entre os seus preceitos estas palavras: "Onde
quer que se encontrem dois ou três reunidos em meu nome, eu mesmo estou
com eles", não quer separar os homens da Igreja, pois ele mesmo
instituiu e formou a Igreja, mas ao contrário, repreendendo os pérfidos
pela discórdia e encarecendo, com a sua própria voz, a paz aos
fieis, quer mostrar que ele está mais com dois ou três que oram
unânimes, do que com muitos que oram na dissidência, e que obtém
mais a prece concorde de poucos que a oração sediciosa de muitos.
Não achará a Deus propício quem não está em
paz com o irmão
Por isto, quando ensinou o modo de orar, acrescentou: "Quando estiverdes
em pé para orar, perdoai, se por acaso tendes mágoa contra alguém,
a fim de que o vosso Pai que está nos céus vos perdoe também
os pecados" (Mc. 11, 25). E se alguém vier ao sacrifício,
estando de mal com alguém, ele afasta-o do altar e ordena que, antes,
se ponha de acordo com o irmão, e só depois volte em paz para
oferecer a Deus a sua dádiva (Cf. Mt. 5, 24).
Deus não olhou aos presentes de Caim (Gén. 4, 5), porque aquele
que, pelo rancor da inveja, não tinha paz com o irmão, não
podia encontrar a Deus propício.
Que espécie de paz podem pretender os inimigos dos irmãos? Que
sacrifício pensam eles oferecer, enquanto não são que
rivais dos sacerdotes? Julgam que Cristo esteja presente nas suas reuniões,
enquanto se reúnem fora da Igreja de Cristo?
Nem o martírio lava a mancha da discórdia
Ainda que esses homens fossem mortos pela confissão do nome cristão,
o seu sangue não lavaria esta mancha. O pecado da discórdia é tão
grande e tão imperdoável, que não se apaga nem pelos tormentos.
Não pode ser mártir quem não está na Igreja, não
pode alcançar o Reino quem abandonou aquela que nasceu para reinar.
Cristo deu-nos a paz. Ele mandou-nos que fôssemos concordes e unidos,
ordenou que os laços do amor e da caridade fossem conservados intactos
e sem rachadura. Não pode iludir-se de ser mártir aquele que
não conservou a caridade fraterna.
O apóstolo Paulo ensina e testemunha isto mesmo quando diz: "Ainda
que eu tivesse fé para remover as montanhas, mas não tivesse
a caridade, eu nada seria, ainda que distribuísse em alimento dos pobres
tudo o que é meu, e entregasse o meu corpo às chamas, mas não
tivesse a caridade de nada adiantaria. A caridade é magnânima,
a caridade é benigna, a caridade não rivaliza, não faz
mal, não se pavoneia, não se irrita, não pensa com maldade,
tudo ama, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais termina" (1
Cor. 13, 1-9).
A caridade nunca termina, ela estará sempre no Reino, durará eternamente
pela unidade dos irmãos em mútua harmonia. A discórdia
não entra no Reino dos céus. Quem, com pérfida divisão,
violou a caridade de Cristo, não poderá chegar aos prémios
do mesmo Cristo, que disse: "Este é o meu mandamento, que vos ameis
mutuamente como eu vos amei" (Jo. 15, 12).
Quem vive sem caridade está sem Deus. Eis a voz do bem-aventurado apóstolo
João: "Deus é amor. Quem permanece no amor permanece em
Deus e Deus nele" (1 Jo. 4, 16). Não podem permanecer com Deus
os que não quiseram estar unidos na Igreja de Deus. Ainda que, lançados
no fogo, fossem consumidos pelas chamas ou perdessem a vida sendo expostos às
feras, tudo isto não seria uma coroa da fé, mas, antes, um castigo
da sua perfídia, não seria o desfecho glorioso de uma vida religiosa
intrépida, mas um fim sem esperança.
Um homem assim poderia ser morto, mas não coroado. Ele confessa que é cristão
do mesmo modo que o diabo, muitas vezes, engana dizendo ser ele o Cristo. Escutemos
o aviso do Senhor: "Muitos virão com o meu nome, dizendo: sou eu
o Cristo, e enganarão a muitos" (Mc. 13, 16). Como o diabo não é Cristo,
embora tome este nome, assim não pode passar por cristão aquele
que não permanece na verdade do Evangelho e na fé de Cristo.
A lei do amor e a unidade
É
certamente coisa incomum e admirável profetizar, expulsar demónios
e fazer obras portentosas aqui na terra, mas quem faz todas essas coisas não
conseguirá o Reino celeste se não anda no caminho recto e certo.
Ouçamos ainda o Senhor: "Muitos me dirão naquele dia: Senhor,
Senhor, não te lembras que em teu nome profetizamos e em teu nome expulsamos
demónios e em teu nome fizemos obras portentosas? Eu porém lhes
direi: jamais vos conheci, apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade" (Mt.
7, 21-23). É necessária a justiça para que alguém
possa ser premiado por Deus. É necessário obedecer aos seus mandamentos
e aos seus avisos, para que os nossos méritos alcancem a recompensa.
O Senhor, no Evangelho, querendo mostrar-nos em breve resumo a senda da nossa
fé e da nossa esperança, disse: "O Senhor, teu Deus, é um
só", e continua: "Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo
o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças" (Mc.
12, 29-31). "Eis o primeiro mandamento. O segundo é semelhante
a ele: amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Nestes dois preceitos
funda-se toda a lei e também os profetas" (Mt. 22, 39-40).
Com a sua autoridade ensinou, ao mesmo tempo, a unidade e o amor. Em dois preceitos
compendiou a lei e todos os Profetas. Mas que unidade observa, que amor pensa
praticar aquele que, como doido pelo furor da discórdia, divide a Igreja,
destrói a fé, perturba a paz, aniquila a caridade, profana o
Sacramento?
Essas aberrações foram preditas
Este mal, ó irmãos fidelíssimos, já tinha começado
algum tempo atrás, mas agora, como triste calamidade, foi crescendo
dia a dia e a venenosa praga da heresia e dos cismas aparece e pulula sempre
mais. Assim deve acontecer no fim do mundo, como nos vaticina e nos avisa o
Espírito Santo por meio do Apóstolo: "Nos últimos
dias, diz ele, chegarão tempos difíceis e haverá homens
que só buscam os próprios gostos, soberbos, arrogantes, avarentos,
blasfemos, desobedientes aos pais, ingratos, desalmados, sem afeição
e sem respeito de compromisso, caluniadores, incontinentes, violentos, sem
nenhum amor ao bem, traidores, atrevidos, estupidamente altivos, amando mais
os prazeres que Deus, ostentando um verniz de religiosidade, mas conculcando
todo valor religioso. Deles são os que se insinuam nas casas e conquistam
mulherezinhas carregadas de pecados, que se deixam levar por várias
volúpias e se mostram sempre curiosos de saber, mas nunca chegam ao
conhecimento da verdade. E como Jamnes e Mambres fizeram resistência
contra Moisés, assim estes resistem à verdade. Mas não
serão bem sucedidos, porque a sua incapacidade será a todos manifesta,
como aconteceu àqueles" (2 Tim. 3, 1-9).
Tudo o que tinha sido preanunciado se está cumprindo e, enquanto se
aproxima o fim do mundo, tudo se realiza nas pessoas e nos acontecimentos.
O adversário está solto. Cada vez mais, o erro vai espalhando
os seus enganos. A insensatez gera orgulho, arde a inveja, a cobiça
chega até à cegueira, a impiedade deprava, a soberba incha, a
discórdia exaspera, a ira enfurece.
III Parte:
Não ceder ao escândalo. Evitar os
hereges.
Porém não nos impressione nem perturbe essa desmedida e temerária
perfídia de muitos. Ao contrário, torne-se mais forte a nossa
fé ao constatarmos a verdade do que foi profetizado. Alguns fizeram-se
traidores, porque assim fora predito; os demais irmãos, em virtude da
mesma profecia, acautelem-se contra essas coisas, escutando a voz do Senhor,
que diz: "Vós, porém, acautelai-vos, porque eis que eu vos
predisse tudo" (Mc. 13, 23).
Evitai, pois, eu vo-lo peço, irmãos, esses homens e repeli, de
vosso lado e de vossos ouvidos suas perniciosas conversas, como se repele um
contágio mortífero. Está escrito: "Cerca os teus
ouvidos com uma sebe de espinhos e não ouças a língua
maldosa" (Eclo. 28, 24). E ainda: "As péssimas conversas corrompem
até as pessoas de boa índole" (1 Cor. 15, 33). O Senhor
recomenda-nos que evitemos essa gente. "São cegos, diz ele, e guias
de cegos. Quando é um cego que conduz outro cego, caem juntos na fossa" (Mt.
15, 14).
Convém estar longe e fugir de qualquer um que se separou da Igreja. É um
transviado, um culpado, ele se condena por si próprio (Cf. Ti. 3, 11).
Poderá pensar que está com Cristo aquele que está tramando
contra os sacerdotes de Cristo e se separa da comunidade do seu clero e do
seu povo? Ele levanta armas contra a Igreja e resiste às ordens de Deus.
Adversário do altar, rebelde contra o Sacrifício de Cristo, traidor
na fé, sacrílego na religião, servo intratável,
filho ímpio, irmão inimigo, despreza os bispos e abandona os
sacerdotes de Deus e ousa erguer um outro altar, pronunciar com voz ilícita
uma outra prece, profanar, com falsos sacrifícios, a Hóstia do
Senhor, e esquece que quem vai contra as ordens de Deus será punido
com os divinos castigos pela sua atrevida audácia.
[Nota: Parece até intolerância de S. Cipriano, mas defender a
fé não é intolerância. A culpa não é tanto
estar fora da Igreja "in-fidelis", mas em ter saído da Igreja
e teimar numa fé espúria e pervertida "perfídia".
S. Cipriano deseja defender os que permanecem na Igreja, das falsas doutrinas
dos hereges, e não incitar um preconceito gratuito].
Castigos dos profanadores do culto
Assim Coré, Datã e Abirão receberam, sem demora, o castigo
da sua presunção, porque, violando as ordens de Moisés
e do sacerdote Aarão, pretenderam usurpar o direito de oferecer sacrifícios
(Cf. Num. 16, 31-35). A terra perdeu a sua firmeza, fendeu-se numa profunda
voragem, e o chão, assim aberto, os engoliu vivos e em pé. A
justiça indignada de Deus não atingiu só os autores daquele
gesto, mas também os outros duzentos e cinquenta, seus companheiros,
que foram cúmplices e solidários com eles. De repente saiu do
Senhor um fogo punitivo e os consumiu. Isto deve valer como demonstração
e sinal de que foi ofensa contra Deus tudo o que aqueles perversos tentaram,
com suas vontades humanas, para frustrar as ordens do próprio Deus.
Assim aconteceu também ao rei Ozias, quando segurou o turíbulo
e, com violência, pretendeu oferecer ele mesmo o incenso, violando a
lei de Deus e desobedecendo ao sacerdote Azarias, que a isto se opunha (Cf.
2 Cron. 26, 16-20). Lá mesmo foi confundido pela divina indignação
e acometido por uma espécie de lepra na fronte. Pela sua ofensa a Deus,
foi punido justamente naquela parte do corpo, onde recebem o sinal (da cruz)
os eleitos de Deus.
Também os filhos de Aarão, por ter colocado no altar um fogo
profano, contra os preceitos do Senhor, foram mortos no mesmo instante pela
divina vingança (Cf. Lev, 10, 1-2; Num. 3, 4).
Menos grave é o pecado dos lapsos
São esses os exemplos que seguem e imitam os que buscam doutrinas estranhas,
introduzem ensinamentos de invenção humana e desprezam a divina
tradição. A eles aplicam-se as repreensões e as censuras
do Evangelho: "Rejeitais o mandamento de Deus para apegar-vos à vossa
própria tradição (pagã)" (Mc. 7, 90).
Este crime é pior do que aquele que se pensa terem cometido os lapsos,
ao menos se falarmos dos que estão arrependidos e rogam a Deus perdão
do seu pecado, dispostos a dar completa satisfação. Os lapsos,
com súplicas, procuram a Igreja, os cismáticos combatem-na. Os
primeiros podem ter sido vítimas de alguma pressão, os segundos
erram no pleno uso da sua liberdade. O lapso, pecando, se prejudicou unicamente
a si mesmo, ao passo que aquele que tenta criar heresias e cismas engana a
muitos, arrastando-os à sua seita. Lá há detrimento de
uma só alma, aqui o perigo é de muitos. O lapso reconhece que
certamente pecou, disto lamenta-se e chora, o cismático, cheio de orgulho
no seu coração e comprazendo-se dos seus próprios erros,
arranca os filhos à mãe, afasta, com aliciamentos, as ovelhas
do Pastor, arrasa os Divinos Sacramentos.
O lapso pecou só uma vez, o outro continua pecando a cada dia. Por fim,
o lapso, mais tarde, poderá enfrentar o martírio e conseguir
as promessas do Reino, o cismático, ao contrário, se for morto
enquanto está fora da Igreja, não alcançará os
prémios da Igreja.
[nota: Lapsos era o nome dado aos cristãos que durante a perseguição
tinham sacrificado incenso aos ídolos, o que significava renúncia à fé.
Para serem reintegrados na comunidade da Igreja deviam se submeter às
penitências prescritas].
Confessores que não perseveraram
Não deveis estranhar, irmãos dilectíssimos, que até entre
os confessores haja alguns que caíram nestes crimes. Acontece também
que alguns deles cometam outros pecados graves e vergonhosos. A confissão
da fé não torna uma pessoa imune das ciladas do demónio.
A quem ainda vive neste mundo ela não comunica uma perpétua segurança
contra as tentações, os perigos e o ímpeto dos ataques
mundanos. Se assim fosse, não veríamos, em confessores, os roubos,
os estupros e os adultérios, que agora, com imensa tristeza, devemos
lamentar em alguns deles.
Quem quer que seja um confessor, ele não poderá ser maior, melhor
e mais amigo de Deus que Salomão. Entretanto, este, durante o tempo
em que se manteve nos caminhos do Senhor, conservou a benevolência com
que o mesmo Senhor o tinha favorecido, mas quando se desviou destes caminhos,
perdeu também a benevolência do Senhor (3 Rs. 11, 9).
Por isto diz a Escritura: "Segura o que tens, para que um outro não
tome a tua coroa" (Ap. 3, 11). Se lá o Senhor ameaça tirar
a alguém a coroa da justiça, é sinal que quem renuncia à justiça
fica privado também da coroa.
[nota: Os confessores eram os cristão que afirmavam a fé perante
os perseguidores, e por um motivo ou outro, não eram condenados a morte.
Alguns deles, cheios de soberba pelo ato de fé que praticou, achavam
que tinham o direito de dar o aval aos lapsos (ver nota acima) e reintegrá-los
na comunidade sem as penitências. Alguns confessores se tornaram cismáticos].
A honra da "confissão" aumenta
o dever do bom exemplo
A confissão da fé é um preâmbulo da glória,
mas não é ainda a posse da coroa. Não é a glória
definitiva, mas só o início do mérito. Está escrito: "O
que perseverar até o fim, este será salvo" (Mt. 10, 22).
Tudo pois o que fazemos antes do fim é só um passo com o qual
vamos subindo ao monte da salvação, mas só ao fim da subida
chegaremos à posse perfeita do cume.
Trata-se de um confessor? Ora, depois da confissão da fé, o perigo
torna-se maior, porque o adversário está mais enraivecido contra
ele.
É
confessor? Por isto, mais do que nunca, deve permanecer fiel ao Evangelho do
Senhor, ele que pelo Evangelho conseguiu esta honra. Diz o Senhor: "A
quem muito é dado, muito será pedido e a quem é concedida
maior dignidade, deste exigem-se maiores serviços" (Lc. 12, 48).
Ninguém se deixe levar à perdição pelo mau exemplo
de algum confessor. Ninguém aprenda, do seu modo de proceder, a injustiça,
a arrogância ou a perfídia.
É
confessor? Seja humilde e tranquilo em todo o seu comportamento, seja disciplinado
e modesto, de modo que, como é chamado confessor de Cristo, imite também
aquele Cristo que confessa "Quem se exalta será humilhado e quem
se humilha será exaltado" (Lc. 18, 14). Assim disse ele, e foi
exaltado pelo Pai, porque, sendo ele a Palavra, a Virtude e a Sabedoria de
Deus Pai, se humilhou a si mesmo na terra. E como poderia amar a altivez, ele
que, com a sua lei nos preceituou a humildade, e, em prémio da sua humildade,
recebeu do Pai o nome mais sublime? (Cf. Flp. 2, 9).
Alguém foi confessor de Cristo? Muito bem, mas, depois, por sua culpa,
não sejam blasfemadas a majestade e a santidade do próprio Cristo.
A língua que confessou a Cristo não seja maldizente nem sediciosa,
não se ouça vociferando em altercações e brigas;
depois de palavras tão divinas de louvor não vá vomitando
veneno de serpente contra os irmãos e contra os sacerdotes de Deus.
Em suma, se alguém, depois da confissão, se tornou culpável
e detestável, se aviltou a sua confissão com maus comportamentos,
se manchou a sua vida com torpezas indignas, se, afinal, abandonou a Igreja,
na qual se tornara confessor, e, quebrando a harmonia da unidade, trocou a
fé de então com a perfídia, um tal homem não pode
lisonjear-se, presumindo da sua confissão, de ser como que predestinado
ao prémio da glória. Ao contrário, por isto mesmo, aumentaram
seus títulos para o castigo.
Elogio dos confessores
Vemos também que chamou a Judas entre os Apóstolos, e este Judas,
em seguida, traiu o Senhor. A fé e a perseverança dos Apóstolos
não esmoreceram pelo facto que Judas traidor tinha pertencido ao seu
grupo. Igualmente em nosso caso: a santidade e a dignidade dos confessores
não ficam destruídas, se naufragou a fé em alguns deles.
O bem-aventurado apóstolo Paulo diz numa das suas cartas: "Se alguns
decaíram da fé, será que a sua infidelidade tornou vã a
fidelidade de Deus? De modo algum. De facto, Deus é verídico
e todo homem é mentiroso" (Rom. 3,3-4; Sl. 115, 11).
A maioria e a parte melhor dos confessores mantém-se no vigor da sua
fé e na verdade da lei e da disciplina do Senhor. Lembrando-se de ter
alcançado a graça e a benevolência de Deus na Igreja, não
se afastam da paz da mesma Igreja. Nisto merecem mais amplo louvor pela sua
fé, porque, desligando-se da perfídia daqueles que já foram
seus companheiros na confissão, resistiram ao contágio do mal.
Iluminados pela luz verdadeira do Evangelho, brilhando na pura e cândida
claridade do Senhor, mostram-se tão dignos de encómio na conservação
da paz de Cristo, quanto o foram no combate, quando se tornaram vencedores
do demónio.
Apelo aos que foram enganados
Quanto a mim, irmãos dilectíssimos, não deixo de exortar
e insistir, porque desejo que, se for possível, nenhum dentre os irmãos
pereça, e a mãe feliz (a Igreja) abranja no seu regaço
o seu povo, unido na concórdia como um só corpo. Se, todavia,
este salutar conselho não consegue reconduzir ao caminho da salvação
certos chefes de cismas e certos autores de dissensão, preferindo eles
obstinar-se em sua cega demência, ao menos os demais, os que foram surpreendidos
na sua simplicidade, ou se deixaram desviar por algum equívoco, ou foram
enganados pelo ardil de uma astúcia dissimulada, ao menos vós
sacudi os laços falaciosos, livrai dos erros os vossos passos extraviados,
sabei reconhecer o caminho recto que conduz ao céu.
Ouvi a voz do Apóstolo, que clama: "Em nome de nosso Senhor Jesus
Cristo, nós vos mandamos, diz ele, que vos afasteis de todos os irmãos
que andam desordenadamente e não segundo a tradição que
receberam de nós" (2 Tes. 3, 6). E de novo: "Ninguém
vos engane com vãs palavras. Por causa disto veio a ira de Deus sobre
os filhos da contumácia. Não estejais, pois, ao lado deles" (Ef.
5, 6-7).
Deveis evitar os delinquentes e até fugir deles, para que não
aconteça que, juntando-se aos que trilham os caminhos do erro e do crime,
alguém se desvie também da verdade e se torne culpado de igual
delito.
Deus é um, Cristo é um, uma é a sua Igreja, uma a fé e
o povo (cristão) é também um, aglutinado pela concórdia
como na compacta unidade de um corpo. Esta unidade não pode ser quebrada.
Um corpo não pode ser dividido, desarticulando as suas junturas. Não
pode ser reduzido a pedaços, dilacerando e arranhando as suas vísceras.
Tudo o que se separa do centro vital não pode continuar a viver ou a
respirar porque fica privado do alimento indispensável à vida.
Bem-aventurados os pacíficos
O Espírito Santo assim nos fala: "Quem é o homem que quer
viver e deseja ver dias excelentes? Refreia do mal a tua língua, e os
teus lábios não falem insidiosamente. Evita o mal e faz o bem,
busca a paz e segue-a" (Sl. 33, 13-15). O filho da paz deve buscar a paz,
deve procurá-la. Quem conhece e ama o vínculo da caridade deve
guardar a sua língua do flagelo da dissensão.
O Senhor, já próximo à paixão, entre outros preceitos
e ensinamentos salutares, acrescentou o seguinte: "Eu vos entrego a paz,
eu vos dou a minha paz" (Jo. 14, 27). Esta é a herança que
nos deixou. Todos os dons e todos os prémios das suas promessas estão
incluídos nisto: a inviolabilidade da paz.
Se somos co-herdeiros de Cristo (Cf. Rom. 8, 17), permaneçamos na paz
de Cristo. Se somos filhos de Deus, sejamos pacíficos. "Bem-aventurados
os pacíficos, diz, porque serão chamados filhos de Deus" (Mt.
5, 9). Convém, pois, que os filhos de Deus sejam pacíficos, mansos
de coração (Cf. Mt. 11, 29), simples quando falam, concordes
nos afectos, sempre ligados uns aos outros pelos laços da unidade de
espírito.
O exemplo dos primeiros cristãos
Essa unidade reinou ao tempo dos Apóstolos e a nova plebe, o povo dos
que acreditaram, guardava os preceitos do Senhor e ficava fiel à sua
caridade. Prova-o a Divina Escritura, dizendo: "A multidão daqueles
que acreditaram se comportava como se fossem todos uma só alma e uma
só mente" (At. 4, 32).
E antes: "Estavam perseverando todos unânimes na oração
com as mulheres e Maria, a mãe de Jesus, e seus irmãos" (At.
1, 14). Por isto oravam de modo eficaz e podiam confiar em alcançar
o que estavam pedindo à misericórdia divina.
Exortação para uma vida cristã integral
Entre nós, ao contrário, esta união está demasiado
relaxada, e ao mesmo tempo aparece muito enfraquecida a generosidade nas obras
(boas). Então vendiam as suas casas e as suas propriedades e entregavam
o preço aos Apóstolos, para que fosse distribuído aos
pobres: assim colocavam seus tesouros no céu (Cf. Mt. 6, 19). Hoje nem
se dão os dízimos dos patrimónios e, enquanto o Senhor
diz "vendei" (Cf. Lc. 12, 33), nós preferimos comprar e possuir
mais. Como, entre nós, murchou o vigor da fé, como esmoreceu
a força daqueles que crêem!
Por isto o Senhor, falando destes nossos tempos, diz no Evangelho: "Quando
vier o Filho do homem, pensas que encontrará fé na terra?" (Lc.
18, 8). Vemos que está acontecendo o que ele predisse. No que diz respeito
ao temor de Deus, à lei da justiça, ao amor, às obras,
não há mais fé. Ninguém se preocupa com as coisas
que hão de vir, ninguém pensa no dia do Senhor, na ira de Deus,
nos futuros suplícios dos incrédulos, nos eternos tormentos destinados
aos pérfidos. Se acreditássemos, a nossa consciência teria
medo de tudo isto. Se não temos medo é sinal que não cremos.
Quem acredita se acautela, quem se acautela se salva.
Despertemos, irmãos dilectíssimos, quebremos o sono da inércia
rotineira e, por quanto for possível, sejamos vigilantes em guardar
e cumprir os preceitos do Senhor. Sejamos prontos, como ele seja, quando diz: "Estejam
cingidos os vossos rins, e as lâmpadas acesas nas vossas mãos,
e vós sede semelhantes a homens que esperam o seu dono, quando voltar
das núpcias, para lhe abrirem logo que ele chegar e bater. Bem-aventurados
os servos que o Senhor, chegando, encontrar vigilantes" (Lc. 12, 35-37). É necessário
que estejamos cingidos, a fim de que, quando vier o dia da partida, não
sejamos surpreendidos cheios de impedimentos e de embaraços. Fique sempre
viva a nossa luz e brilhe em boas obras, para nos guiar da noite deste mundo
aos esplendores da claridade eterna. Sempre solícitos e cautos, fiquemos à espera
da chegada repentina do Senhor. Quando ele bater, encontre a nossa fé vigilante
com uma tal vigilância que mereça receber o prémio do mesmo
Senhor.
Se forem observados esses mandamentos, se forem postas em prática essas
exortações, não acontecerá que sejamos vencidos,
no sono, pela falácia do demónio, mas, como servos bons e vigilantes,
reinaremos com Cristo glorioso.
Arcebispo Primaz Katholikos
S.B. Dom ++ Paulo Jorge de Laureano – Vieira y Saragoça
(Mar Alexander I da Hispânea)
Última actualização deste
Link em 01 de Outubro de 2011