A Santa Tradição

 

A FONTE DA FÉ ORTODOXA

O significado intrínseco da tradição

A história da Igreja Católica Ortodoxa é marcada externamente por uma série de rupturas repentinas: a tomada de Alexandria, Antioquia e Jerusalém pelos árabes maometanos; o incêndio de Kiev pelos mongóis; os dois saques de Constantinopla; a Revolução de Outubro na Rússia. Entretanto, estes eventos jamais abalaram a continuidade interna da Igreja Ortodoxa, mesmo que tenham transformado a aparência externa do mundo ortodoxo. O que mais chama a atenção de um estranho ao encontrar a Ortodoxia é seu ar de Antiguidade, sua aparente imutabilidade. Descobre-se que os ortodoxos ainda baptizam com três imersões como na Igreja primitiva; ainda trazem bebés e crianças pequenas para a Santa Comunhão; na Liturgia o diácono ainda exclama: "Vigiai as portas!" — lembrando dos primórdios quando a entrada da Igreja era zelosamente guardada e ninguém senão os membros da família Cristã podiam frequentar os ofícios; o Credo ainda é recitado sem nenhum acréscimo.
Existem poucos exemplos exteriores de algo que penetre em todos os aspectos da vida Ortodoxa. Recentemente quando dois eruditos Ortodoxos foram solicitados a resumir as características distintas de sua Igreja, ambos apontaram para a mesma coisa: sua imutabilidade, sua determinação de permanecer leal ao passado, seu sentido de viva continuidade com a Igreja dos tempos antigos (ver Panagiotis Bratsiotis e Georges Florovsky, em Orthodoxy, A Faith and Order Dialogue, Geneva,1960). Dois séculos e meio antes, os Patriarcas Orientais disseram exactamente a mesma coisa para os Non-Jurors: Nós preservamos a Doutrina do Senhor não corrompida, e firmemente aderimos à Fé que Ele nos entregou, e a mantemos livre de imperfeições e diminuições, como um Tesouro Real, e um monumento de grande preço, nem acrescentando, nem tirando nada dela" (Carta de 1718, em G. Williams, The Orthodox Church at the Eighteenth Century pg 17).
Essa ideia de viva continuidade é resumida para os Ortodoxos em uma palavra: Tradição. "Nós não mudamos os limites permanentes que nossos Pais estabeleceram," escreveu S. João Damasceno, "mas nós mantemos a Tradição, assim como a recebemos" (On Icons, II, 12, P.G. XCIV, 1297B).
Os Ortodoxos estão sempre falando de Tradição. O que eles querem dizer com a palavra? A Tradição, diz o dicionário Oxford, é uma opinião, ou costume legado pelos ancestrais para a posteridade. A Tradição Cristã, nesse caso é a Fé que Jesus Cristo concedeu aos Apóstolos, e que desde os tempos apostólicos tem sido passada de geração em geração na Igreja (comparar com Paulo I Co. 15:3). Mas para um Cristão Católico Ortodoxo Ortodoxo, Tradição significa algo mais concreto e específico que isso. Significa os livros da Sagrada Escritura; significa o Credo; significa os decretos dos Concílios Ecuménicos e os escritos dos Padres; significa os Cánones, os Livros de Ofícios, os Santos Ícones — de facto o sistema doutrinal completo, o governo da Igreja, a louvação e a arte que foram articuladas pelos séculos. O Cristão Católico Ortodoxo de hoje vê-se como herdeiro e guardião da grande herança recebida do passado, e ele acredita ser sua obrigação transmiti-la não prejudicada ao futuro.
Note-se que a Sagrada Escritura forma uma parte da Sagrada Tradição. Às vezes a Tradição é definida como ‘o ensinamento oral de Cristo, não gravado por escrito por seus discípulos imediatos’ (Oxford Dictionary). Não só escritores não-Ortodoxos, mas também muitos escritores Ortodoxos adoptaram esse modo de falar, tratando as Escrituras e a Tradição como duas coisas diferentes, duas fontes distintas da Fé Cristã. Mas na realidade só existe uma fonte, porque as Escrituras existem dentro da Sagrada Tradição. Separar ou contrastar as duas é empobrecer ambas.
Os Católicos Ortodoxos enquanto reverenciando essa herança do passado, estão também bem conscientes que nem tudo recebido do passado tem igual valor. Entre os vários elementos da Sagrada Tradição, a única preeminência pertence às Sagradas Escrituras, ao Credo, às definições doutrinais dos Concílios Ecuménicos: essas coisas os Católicos Ortodoxos aceitam como absolutas e imutáveis, algo que não pode ser cancelado ou revisado. As outras partes da Sagrada Tradição não têm a mesma autoridade. Os decretos de Jassy ou Jerusalém não estão no mesmo nível que o Credo de Nicéia, nem os escritos de um Atanásio ou de um Simeão o Novo Teólogo, ocupam a mesma posição que o Evangelho de São João.
Nem tudo recebido do passado é de igual valor, e nem tudo recebido do passado é necessariamente verdade. Como um dos Bispos deixou marcado no Concílio de Cartago em 257: "O Senhor disse, Eu sou a verdade." Ele não disse, Eu sou o costume’ (The Opinions of the Bishops on the Baptizing of Heretics, 30). Existe uma diferença entre Tradição e tradições: muitas tradições legadas pelo passado são humanas e acidentais — opiniões pias (ou pior), mas não uma parte verdadeira da Tradição una, a mensagem essencial Cristã.
É necessário questionar o passado. O Bizantino e o posterior. Nos tempos Bizantinos, os Ortodoxos nem sempre foram suficientemente críticos em sua atitude para com o passado, e o resultado foi frequentemente a estagnação. Hoje essa atitude não crítica não pode mais ser mantida. Níveis mais altos de escolaridade, contactos crescentes com Cristãos Ocidentais, as invasões do secularismo e do ateísmo, têm forçado os Católicos Ortodoxos, nos tempos presentes, a olhar mais de perto para a sua herança e a distinguir mais cuidadosamente entre Tradição e tradições. A tarefa de discriminação nem sempre é fácil. É necessário evitar tanto o erro dos Velhos Crentes quanto o da ‘Igreja Viva’: o primeiro partido caiu em um extremo conservadorismo que não sofreu modificação nem mesmo em tradições, e o outro caiu num Modernismo ou liberalismo teológico que abala a Tradição. Mesmo assim, apesar de certas desvantagens manifestas, os Católicos Ortodoxos de hoje em dia estão talvez numa melhor posição para discriminar o certo do que seus predecessores estiveram por muitos séculos; e frequentemente é precisamente seu contacto com o ocidente que os está ajudando a ver mais e mais claramente o que é essencial em sua herança.
A verdadeira fidelidade Ortodoxa ao passado deve ser sempre uma fidelidade criativa; pois a verdadeira Ortodoxia não pode nunca descansar satisfeita com uma estéril ‘teologia de repetição’, que como papagaio, repete fórmulas aceites sem esforçar-se para compreender o que está por detrás delas. A lealdade à Tradição, entendida propriamente não é uma coisa mecânica, um processo pouco inteligente de passar aquilo que foi recebido. Um pensador Ortodoxo deve ver a Tradição de dentro, ele deve entrar no espírito interior dela. De modo a viver dentro da Tradição, não é suficiente simplesmente dar aceitação intelectual a um sistema de doutrina; pois a Tradição é muito mais que um conjunto de proposições abstractas - é uma vida, um encontro pessoal com Cristo no Espírito Santo. A Tradição não é só mantida pela Igreja, ela vive na Igreja, ela é a vida do Espírito Santo na Igreja.
A concepção Ortodoxa de Tradição não é estática mas dinâmica, não uma aceitação morta do passado mas uma experiência viva do Espírito Santo no presente. A tradição, enquanto internamente imutável (pois Deus não muda), está constantemente assumindo novas formas, que suplementam a forma anterior sem substitui-la. Os Ortodoxos falam como se o período de formulação doutrinal tivesse chegado ao fim completamente, no entanto esse não é o caso.
Talvez nos nossos próprios dias um novo Concílio Ecuménico seja realizado, e a Tradição seja enriquecida por novos estatutos da Fé.
Essa ideia de Tradição como uma coisa viva foi muito bem expressa por Georges Florovsky: ‘A Tradição é a testemunha do Espírito Santo; a incessante revelação e pregação de boas novidades do Espírito Santo... Para aceitar e compreender a Tradição devemos viver dentro da Igreja, devemos estar conscientes da presença doadora de graça do Senhor nela; devemos sentir o sopro do Espírito Santo nela... A Tradição não é só um princípio protector e conservador; é primariamente, o princípio de crescimento e regeneração...A Tradição é a constante permanência do Espírito Santo e não só a memória de palavras (‘Sobornost: the Catholicity of the Church,’ na The Church of God, editado por E. L. Mascall, pgs.64-65.Comparar com G. Florovsky, ‘Saint Gregory Palamas and the Traditionof the Fathers no periódico Sobornost, serie 4 nº 4, 1961, pgs. 165-167; e V. Lossky, ‘Tradition and Traditions’, no Ouspensky e Lossky, The Meaning of the Icons, pgs. 13-24. A esses dois ensaios eu fico em grande débito).
A Tradição é a testemunha do Espírito: nas palavras de Cristo, "Mas quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade" (Jo. 16:13). É essa promessa divina que forma a base da devoção Católica Ortodoxa à Sagrada Tradição.

 

 

Arcebispo Primaz Katholikos

S.B. Dom ++ Paulo Jorge de Laureano – Vieira y Saragoça
(Mar Alexander I da Hispânea)


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Última actualização deste Link em 01 de Outubro de 2011