A Igreja que Henrique VIII não fundou
Até à Reforma Protestante havia somente um ministério
cristão. E este ministério era e ainda é algo contínuo
desde o início do Cristianismo, pela interrompida sucessão de
ordenações de Bispos. É o ministério católico
de Bispos, Presbíteros e Diáconos. A corrente de sucessivas delegações
de autoridade ministerial derivou dos Apóstolos, sem nunca ter sido
rompida. É o ministério com o qual os anglicanos estão
familiarizados. Sem dúvida alguma, havia grande corrupção
na Igreja medieval, particularmente na hierarquia da Igreja Romana. Era mais
que urgente uma reforma. Porém, os reformadores fizeram uma quebra que
provocaram nessa sucessão, com a perda da autoridade derivada dos Apóstolos
para representar o Senhor como seus Ministros. Foi isto que os reformadores
fizeram, e as Igrejas surgidas pela acção deles são novas
Igrejas, que datam da Reforma. Por sua vez, a Reforma, enfrentando oposição
e ganhando força, chegou a extremos, destruindo coisas que antes deveria
purificar e preservar.
Henrique VIII não permitiu a interferência papal nas questões
do seu país, ficando contrariado quando o Papa negou declarar nulo o
seu casamento com Catarina de Aragão. Seria um acto comum naqueles tempos,
- já havia diversos precedentes - mas o Papa estava pressionado por
questões políticas de Espanha e Alemanha, e não atendeu
ao pedido. E o rei pôs fim à autoridade, interferência e
jurisdição papal em Inglaterra, chamando-a a si mesmo. Então,
em represália, Henrique foi excomungado (“afastado da comunhão
com a Igreja”) pelo Papa. Mas a Igreja na Inglaterra permaneceu como
sempre fora, ou seja, praticamente com as mesmas Igrejas, os mesmos Bispos
e Sacerdotes, as mesmas Dioceses, os mesmos ofícios e os mesmos fiéis.
A história regista o inexpressivo número de clérigos que
ficou ao lado do poder papal. Mais tarde, o Rei suprimiu as Ordens Religiosas
e confiscou as suas propriedades.
Se isto significa a fundação de uma nova Igreja, então
Henrique fundou uma Igreja. No entanto, não significa! “Seria
como um indivíduo trocar de identidade pessoal simplesmente por lavar
o rosto, barbear-se e corrigir o penteado”.
Após a morte de Henrique VIII, o seu filho Eduardo VI sucedeu-o. Sendo
menor, o seu curto reinado foi dirigido por regentes. Estes haviam aprendido
os ensinos não só de Martinho Lutero, mas também os de
João Calvino e até de Zwinglio. E trabalharam para sujeitar a
Igreja de Inglaterra aos pontos de vista destes reformadores. O Arcebispo Cranmer
não quis ou não pôde resistir.
Em 1549 aparecera o primeiro «Livro de Oração Comum».
Aquelas mesmas pessoas continuaram a lutar para entregar a Igreja aos reformadores
do continente, e, em 1552, o segundo Livro de Oração foi imposto à Igreja.
Representava um importante passo no rumo dos referidos reformadores. No entanto,
o seu uso não foi geral devido à morte do Rei e a subida ao trono
de Maria, a sanguinária, e de seu marido espanhol.
Após a sua coroação, a comunhão com Roma foi restabelecida,
os Livros de Oração foram postos fora da lei, a Missa em latim
restaurada, e também restaurada a autoridade papal, e tudo voltou a
ser como antes do rompimento de Henrique VIII com Roma, excepto no referente às
Ordens Religiosas. Onde estava, agora, a nova Igreja de Henrique, supondo-se
que ele a houvesse fundado?
Durante o reinado de Maria, serviram à Igreja todos os mesmos Bispos
e outros clérigos anteriores a ela. Alguns, é claro, haviam morrido,
e outros sucederam-nos. Mas a mudança de pessoas, no tempo de Henrique
e depois dele, foram as trocas normais impostas pelo tempo, excepto, com referência
a cerca de 300 que Maria queimou como hereges (sendo os mais notáveis
entre eles Cranmer, Ridley e Latimer).
Assim, a existência da Igreja de Inglaterra foi contínua, desde
os tempos anteriores à briga de Henrique VIII com o Papa até a
ascensão, em 1558 da Rainha Isabel I.
Quando esta ocupou o trono, a Igreja de Inglaterra estava, de facto, em plena
comunhão com Roma e assim continuou por vários anos. Mas havia
na Inglaterra, no entanto, pessoas influentes, entre clérigos e leigos,
que desejavam uma reforma eclesiástica e sobretudo opunham-se à influência
papal. Não quis ela enviar representantes ao Concílio de Trento,
então reunido. E desejou prosseguir na reforma eclesiástica e
estabelecer, uma vez mais, livros de ofícios religiosos. A Igreja, no
que respeita à mudança de pessoas, continuou normalmente. Houve
trocas e novos Bispos foram sagrados, e também Presbíteros ordenados
para lugares vagos.
A política de Isabel esgotou a paciência das autoridades romanas.
Uma bula foi planejada para depô-la e excomungar os seus súditos
que a continuassem a reconhecer como soberana. Alguém poderia perguntar
aqui se não foi, na verdade, o Bispo de Roma que se afastou e deu vida
independente à Igreja de Inglaterra com esta excomunhão? Tal
coisa não foi bem recebida em Inglaterra, pois não parecia possível
que um Papa depusesse um soberano inglês. Permaneceu o povo leal à Rainha
e daí veio o fim da comunhão entre a Igreja Inglesa e a Sé Romana.
E a Igreja da Inglaterra continuou com as mesmas Dioceses, os mesmos Bispos,
os mesmos Presbíteros, as mesmas Paróquias e os mesmos fiéis.
Não houve interrupção naquela continuidade, não
obstante o período da ditadura de Cromwell.
Façamos aqui uma pausa para olhar esta história tão conhecida
e perguntar-nos em que ponto a velha Igreja da Inglaterra terminou e a nova
foi fundada.
Evidentemente, nenhuma nova Igreja foi fundada por Henrique VIII ou por qualquer
outro. A Igreja da Inglaterra é a mesma que existiu desde o tempo dos
Celtas, ou os dias de Santo Agostinho... E as suas filhas, incluindo a Igreja
Episcopal Anglicana do Brasil e a Igreja Episcopal dos Estados Unidos da América,
têm o mesmo ministério que existia nas Ilhas Britânicas
desde os tempos dos Celtas, a partir do século II, e depois com a chegada
de Agostinho e seus monges à Cantuária, no final do século
VI, e a união das duas tradições no século VII,
que envolve o começo e o estabelecimento missionário da Fé Cristã naquelas
ilhas. Daí, estão equivocadas e erram aquelas pessoas quando
pensam que esta parte da Igreja Una, Santa Católica e Apostólica
de Cristo surgiu na Reforma, diferindo em coisas sem importância das
Igrejas luteranas, calvinistas e metodistas, cujos ministérios foram
por elas mesmas criados.
A origem apostólica do ministério da Igreja Anglicana está na
Sucessão Apostólica, coisa familiar a todos nós. No entanto,
a importância essencial desta continuidade não se faz bem clara
por vezes.
Uma ilustração talvez ilumine o assunto. Entre os deveres de
um Presbítero está a declaração de absolvição
(ver o Rito de Ordenação de Bispos). A absolvição é equivalente
a “teus pecados são perdoados”. Certamente estamos recordados
como os judeus denunciaram Jesus por ter dito isso a um doente que curou. E
o fundamento da denúncia era que isso representava uma blasfémia,
já que só Deus pode perdoar pecados, proposição
que o Senhor não havia negado. Mas não era blasfémia:
Ele recebera autoridade do próprio Deus.
Também lembramos que Jesus disse aos Apóstolos que os pecados
que perdoassem seriam perdoados, e os que retivessem seriam retidos, já que
recebiam o poder (autoridade divina) de pronunciar a absolvição,
não por si mesmos mas como representantes de Deus.
A perpetuação do ministério requeria a delegação
da autoridade apostólica aos seus sucessores, os Bispos. Isso é de
importância suprema na Sucessão Apostólica. E os Bispos
delegam parte da sua autoridade aos Presbíteros. No Livro de Oração
Comum (no Ordinal, isto é, ritos de ordenação) encontramos
esta autoridade dada aos Presbíteros, na sua ordenação: “Aqueles
a quem perdoardes os pecados, lhes serão perdoados”. Mas certamente
que não se deve esquecer que é Deus, agindo por meio de seu ministério
autorizado, quem realmente perdoa.
Esperamos que esta ilustração esclareça a necessidade
de Autoridade Apostólica e o seu efeito. A absolvição,
no entanto, não é o único poder transmitido por essa sucessão.
Se a Igreja Anglicana fosse como as Igrejas Reformadas, com o seu ministério
por elas mesmas criado, a Autoridade Apostólica não existiria
para ela.
As comparações são sempre odiosas, mas não podemos
esquecer os inestimáveis benefícios que recebemos de nossa ligação
com a Igreja dos Apóstolos. Na Autoridade Apostólica que possuímos
por meio da Sucessão, a Igreja Anglicana tem algo indispensável
para amar e proteger, o que uma Igreja fundada por um Rei não possuiria.
Temos de proclamar, em todas as oportunidades que é falso dizer que
Henrique VIII fundou o Anglicanismo.
O que se passou na reforma da Igreja de Inglaterra foi a separação
de Roma, o rompimento da comunhão com ela. O que houve foi uma divisão.
Séculos antes tinha havido outra divisão, quando Roma rompeu
com a grande Igreja de Constantinopla. Nenhum dos corpos então separados
- Romano, Ortodoxo, Anglicano - constituiu uma nova Igreja. São, isto
sim, pedaços da IGREJA.
E precisamente dessa Igreja descendemos, através dos Apóstolos.
Arcebispo Primaz Katholikos
S.B. Dom ++ Paulo Jorge de Laureano – Vieira y Saragoça
(Mar Alexander I da Hispânea)
Última actualização deste
Link em 01 de Outubro de 2011