Catecismo Ortodoxo
Parte III
Apêndice
1 - Novas correntes no pensamento
filosófico-teológico
Russo
a - A questão do desenvolvimento dogmático
A questão do desenvolvimento dogmático de há muito
tem sido objecto de discussão na literatura teológica: pode-se
aceitar, do ponto de vista da Igreja, a ideia de desenvolvimento de dogmas?
Na maioria dos casos isso é essencialmente uma disputa sobre palavras;
uma diferença ocorre porque a palavra "desenvolvimento" é entendida
de diferentes modos: entende-se desenvolvimento como o descobrimento de algo
já dado ou como uma nova revelação?
Em geral, a visão do pensamento teológico é esse: a consciência
da Igreja desde os Apóstolos até o fim da vida da Igreja, sendo
guiada pelo Espírito Santo, é em sua essência única
e a mesma. O ensinamento Cristão e o escopo da revelação
divina são imutáveis. O ensinamento da fé, pela Igreja
não se desenvolve, e a consciência da Igreja sobre si própria,
com o passar dos séculos, não se torna maior, mais profundo e
mais amplo do que era entre os Apóstolos. Não há a acrescentar
ao ensinamento da fé passado pelos Apóstolos. Apesar da Igreja
ser guiada sempre pelo Espírito Santo, não vemos na história
da Igreja, e não esperamos ver, novas revelações teológicas.
Tal visão sobre a questão do desenvolvimento dogmático
esteve presente, em particular, no pensamento teológico russo do século
XIX. A aparente diferença de opiniões das várias pessoas
sobre essa questão foi resultado das circunstâncias sob as quais
ela foi discutida. Em discussões com os protestantes foi natural defender
o direito da Igreja de "desenvolver" dogmas significando isso o direito
dos Concílios de estabelecer e sancionar proposições dogmáticas.
Nas discussões com os católicos romanos, de outro lado, foi necessário
opor-se às inovações dogmáticas arbitrárias
feitas pelos católicos romanos nos tempos modernos, e assim se opor
ao principio da criação de novos dogmas que não tenham
sido passados pela Igreja antiga. Em particular os Vetero-Católicos
mais próximos da Ortodoxia, ambos rejeitando o dogma da infalibilidade
papal - reforçaram no pensamento teológico russo o ponto de vista
conservador sobre a questão do desenvolvimento dogmático, visão
que não aprova o estabelecimento de novas definições dogmáticas.
Em 1880 e anos seguintes nós vemos uma aproximação diferente
a essa questão. V. S Soloviev, que apoiava a união da Ortodoxia
com a Igreja Romana desejando justificar o desenvolvimento dogmático
da Igreja Católica Romana defendeu a ideia do desenvolvimento da consciência
dogmática da Igreja. Ele argumentou assim: "O Corpo de Cristo muda
e é aperfeiçoado" como todo organismo; a original "base" da
fé é descoberta e esclarecida na história do Cristianismo; "A
Ortodoxia permanece não só meramente pela antiguidade, mas pelo
eternamente vivo Espírito de Deus".
Soloviev esteve inspirado para defender o ponto de vista do "desenvolvimento" não
só por sua simpática pela Igreja Católica Romana, mas
também por seu modo próprio de ver as questões filosóficas
religiosa - suas ideias sobre Sofia, a sabedoria de Deus, sobre Deus-homem
como um processo histórico, etc... Levado por seu próprio sistema
metafísico, Soloviev nos anos seguintes a 1890 começou o ensinamento
do "eterno feminino" que ele dizia, "não é meramente
uma imagem inactiva da mente de Deus, mas um ser espiritual vivo que possui
a totalidade de poder e acção. O processo completo do mundo e
da história é o processo de sua realização e encarnação
numa grande multiplicidade de formas e graus. O objecto celeste de nosso amor é só um,
e é sempre para todo mundo e o mesmo, a eterna feminilidade de Deus" (As
ideias de Soloviev podem ser superficialmente comparadas ao movimento de "libertação
das mulheres" de hoje, cuja última tentativa nos círculos
religiosos tem sido "de sexualizar" a Escritura removendo dela todas
as referências à natureza "masculina" de Deus. Os movimentos
de hoje, no entanto, não tocam realmente na filosofia ou teologia, permanecendo
movimentos primitivamente de "liberação" social; ao
passo que o pensamento de Soloviev é mais sério, sendo um tipo
de ressurreição da antiga filosofia gnóstica: ambos, são
igualmente estranhos na forma que suas ideias tomam, e ambos são concordantes
em ver a necessidade de mudar os dogmas e expressões Cristãs
tradicionais).
Assim uma série completa de novos conceitos começou a entrar
no pensamento religioso russo, esses conceitos não evocam nenhuma resistência
especial nos círculos teológicos russos, já que eles eram
expressões mais como filosofia do que como teologia.
Soloviev por seus trabalhos literários e palestras foi capaz de inspirar
interesse por problemas religiosos num vasto círculo da sociedade russa
educada. No entanto, o interesse juntou-se a um desvio do autêntico modo
de pensar Ortodoxo. Isso foi expresso por exemplo, nos "encontros religiosos
filosóficos" de Petesburgo em 1901-1903. Nesses encontros, questões
como as seguintes foram levantadas: "Pode-se considerar o ensinamento
dogmático da Igreja já completo? Não podemos esperar novas
revelações? De que maneira uma nova criatividade religiosa pode
ser expressa no Cristianismo, e como ela pode ser harmonizada com a Sagrada
Escritura e a Tradição da Igreja, com os decretos dos Concílios
Ecuménicos, e os ensinamentos dos Santos Padres?" Especialmente
sintomáticos foram as disputas a respeito do "desenvolvimento dogmático".
No pensamento religioso e social russo, no início do século vinte
apareceu uma expectativa do despertar de uma "nova consciência religiosa" no
solo Ortodoxo. Começava a ser expressa a ideia de que a teologia não
deveria temer novas revelações, que a dogmática deveria
usar uma base racional mais larga, que ela não poderia ignorar inteiramente
as inspirações proféticas pessoais dos dias presentes,
que deveria haver um alargamento do círculo dos problemas dogmáticos
fundamentais, para que a dogmática pudesse apresentar uma completa visão
do mundo teológica filosófica. As idéias excêntricas
expressas por Soloviev receberam novos desenvolvimentos e mudanças,
e o primeiro lugar entre elas foi dado ao problema da Sophiologia. Os mais
destacados representantes dessa nova corrente foram o Padre Paul Florensky
(«The Pillar and Foundation of the Church» e outras obras) e Sergei
N. Bulgakov, que mais tarde foi Arcipreste (seus últimos escritos «sophiológicos» incluem «The
Unsetting Light, The unbuert Bush, Person ans Personality, The Friend of the
Briegroom, The Lamb of God, The Comforter, e The Revelation of John»).
Em conexão com essas questões é natural que perguntemos:
a teologia dogmática, em sua forma usual, satisfaz a necessidade do
Cristão de ter uma completa visão do mundo? Se a dogmática
recusa-se a reconhecer o princípio do desenvolvimento, ela não
se torna uma coleção sem vida de dogmas separados?
Com toda segurança deve-se dizer que a espera das verdades reveladas
que entram nos sistemas aceitos da teologia dogmática dá toda
oportunidade para a formação de uma exaltada e ao mesmo tempo
clara e simples visão do mundo. Teologia dogmática, construída
na base de firmes verdades dogmáticas fala de um Deus pessoal. Que está inexplicavelmente
perto de nós, que não precisa de intermediários entre
si e a criação: ela fala do Deus na Santíssima Trindade "Que é sobre
todos, e por todos e em todos" (Ef. 4, 6), do Deus que ama a sua criação,
que ama a humanidade e é condescendente com nossas enfermidades, mas
não priva as suas criaturas de liberdade; ela fala do homem e do género
humano, do seu alto propósito e de suas exaltadas possibilidades espirituais
e ao mesmo tempo do seu triste nível moral no tempo presente, de sua
queda; ela apresenta caminhos e meios para o retorno, ao paraíso perdido,
revelados pela Encarnação e morte na Cruz do Filho de Deus, e
o caminho para adquirir a eternamente abençoada vida. Todas essas são
verdades vitalmente necessárias. Aqui fé e amor, conhecimento
e suas aplicações em acção, são inseparáveis.
A Teologia Dogmática não pretende satisfazer todos os pontos
de curiosidade da mente humana. Não há dúvida para nosso
olhar espiritual a Divina revelação revelou só uma pequena
parte do conhecimento de Deus e do mundo espiritual. Nós vemos nas palavras
do Apóstolo, "porque agora vemos por espelho em enigma" (1
Cor. 13, 12). Um incontável número de mistérios de Deus
permanece fechado para nós.
Mas deve-se afirmar que as tentativas de alargar os limites da teologia, seja
numa base mística ou racional, que apareceram tanto nos antigos quanto
nos modernos tempos, não conduzem a um mais completo conhecimento de
Deus e do mundo. Esses sistemas conduzem especulações mentais
definidas e colocam a mente diante de novas dificuldades. A coisa principal
no entanto, é a seguinte: opiniões nebulosas a respeito da vida
interior em Deus, tais como são vistas em certos teólogos que
entraram no caminho de filosofar na teologia, não se harmonizam com
o imediato sentimento de reverência, com a consciência e sentimento
da proximidade e santidade de Deus, e na verdade, elas sufocam esse sentimento.
No entanto, por essas considerações nós não negamos
absolutamente todo tipo de desenvolvimento na esfera do dogma. O que, então é sujeito
a desenvolvimento na dogmática?
A história da Igreja mostra que a quantidade de dogmas, no sentido estreito
da palavra foi crescendo gradualmente. Não é que dogmas foram
desenvolvidos, mas sim que a esfera de dogmas na história da Igreja
foi se alargando até que ela chegou a seu próprio limite, dado
pela Sagrada Escritura. Em outras palavras, o aumento foi na quantidade de
verdades da fé que receberam uma formulação precisa nos
Concílios Ecuménicos, ou em geral foram confirmados pelos Concílios
Ecuménicos. O trabalho da Igreja nessa direcção consistiu
na definição precisa das afirmações dogmáticas
em seus esclarecimentos, em mostrar suas bases na Palavra de Deus, em encontrar
suas confirmações na Tradição da Igreja, e declara-los
obrigatórios para todos os fiéis. Nesse trabalho da Igreja o
escopo das verdades dogmáticas sempre permaneceu um e o mesmo; mas em
vista do surgimento de opiniões e ensinamentos não ortodoxos,
a Igreja sanciona algumas afirmações dogmáticas que são
Ortodoxas e rejeita outras que são heréticas. Não se pode
negar que graças a tais definições dogmáticas o
conteúdo da fé tornou-se mais claro na consciência das
pessoas da Igreja e na própria hierarquia da Igreja.
Além do mais, o próprio aprendizado teológico é sujeito
a desenvolvimento. A teologia dogmática pode usar vários métodos;
ela pode ser suplementada por material para mais estudo; ela pode fazer um
maior ou menor uso dos fatos da exegese (a interpretação dos
fatos da Sagrada Escritura), de filologia bíblica, de história
da Igreja, de escritos patrísticos, e assim também de conceitos
racionais; ela pode responder mais completamente ou timidamente as heresias,
falsos ensinamentos e a várias correntes de pensamentos religiosos contemporâneos.
Mas o aprendizado teológico (como oposto á própria teologia) é um
assunto exterior em relação à vida espiritual da igreja.
Ele só estuda o trabalho da Igreja e seus decretos dogmáticos
e outros. A teologia dogmática como um ramo do aprendizado pode se desenvolver,
mas não pode desenvolver e aperfeiçoar um ensinamento da Igreja.
(Pode-se ter uma analogia aproximada disso no estudo de qualquer escrita: «Pushkinologia»,
por exemplo, pode crescer, mas disso a soma de pensamentos e imagens colocados
em seus trabalhos pelo próprio poeta não cresce). O florescimento
ou declínio do aprendizado teológico pode coincidir ou falhar
em coincidir com o nível geral, com a elevação ou declínio
de vida espiritual na Igreja, em um ou outro período histórico:
o desenvolvimento do aprendizado teológico pode ser impedido sem perda
para a essência da vida espiritual. O aprendizado teológico não é chamado
a guiar a Igreja na sua totalidade; é próprio para ele buscar
e se manter estritamente de acordo com o encaminhamento dado pela consciência
da Igreja.
É
dado a nós o que é necessário para o bem de nossas almas.
O conhecimento de Deus, na vida Divina e da Divina Providência, é dado
aos homens no grau em que ele tem uma imediata explicação moral
na vida. O Apóstolo ensina isso quando ele escreve: "Visto como
o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade...
pondo nisto mesmo toda a diligência, acrescentai à vossa fé a
virtude, e à virtude a ciência, e à ciência temperança,
e à temperança paciência, e à paciência piedade,
e à piedade amor fraternal, e ao amor fraternal caridade" (2 Ped.
1, 3-7). Para o Cristão a coisa mais essencial é a perfeição
moral, tudo o mais que foi dado pela palavra de Deus e pela Igreja são
meios para atingir esse objectivo fundamental.
b - Filosofia e Teologia
No pensamento teológico contemporâneo penetrou
a visão que a teologia dogmática Cristã deveria ser suplementada,
tornada "frutífera" e iluminada por uma base filosófica
e que ela deveria aceitar conceito filosófico nela própria".
"
Para justificar a fé de nossos pais, para elevá-la a um novo
grupo e consciência racional" - esse é o modo pelo qual V.
S. Soloviev define seu objectivo, assim formulado não haveria nada essencialmente
digno de repreensão. No entanto, deve-se ser cuidadoso para não
misturar duas esferas - aprendizado teológico e filosofia: tal mistura é capaz
de conduzir alguém à confusão e eclipsar seu propósito,
seu conteúdo e seus métodos.
Nos primeiros séculos do Cristianismo os escritores Cristãos
e Padres da Igreja responderam largamente ás ideias filosóficas
de seu tempo, e eles próprios usaram os conceitos que tinham sido trabalhados
pela filosofia. Porque? Assim eles lançaram uma fonte entre a filosofia
grega e a filosofia Cristã. O Cristianismo apresentou-se como uma visão
do mundo que era para substituir as visões filosóficas do mundo
antigo, ficando acima delas. Então, tendo se tornado no quarto século
a religião oficial do estado, ela foi chamada pelo próprio estado
para tomar o lugar de todos os sistemas de visões do mundo que existiram
até aquela época. Essa é a razão porque, no Primeiro
Concílio Ecuménico na presença do Imperador, ocorreu um
debate dos professores da fé Cristã com um "filósofo".
Mas não poderia ser uma simples substituição (da filosofia
pagã pela Cristã). A apologética Cristã tomou sobre
si o objectivo de tomar posse do pensamento filosófico pagão
dirigindo seus conceitos para o canal do Cristianismo. As ideias de Platão
mostraram-se para os escritores Cristãos como um estágio preparatório
no paganismo para a Revelação Divina. À parte isso, no
curso das coisas, a Ortodoxia teve que combater o Arianismo, não tanto
na base da Sagrada Escritura quanto por meio da filosofia, porque o arianismo
havia tomado da filosofia grega seu erro fundamental - nomeadamente, o ensinamento
do logos como um princípio intermediário entre Deus e o mundo;
estando abaixo da divindade. Mas mesmo com tudo isso, a direcção
geral do pensamento patrístico todo foi a base de todas as verdades
da fé Cristã baseadas na Revelação Divina e não
em deduções racionais e abstratas. São Basílio,
o Grande, em seu tratado, «What Benefictcan Be Drawn from Pagan Works»,
dá exemplo de como usar o material instrutivo contido nesses escritos.
Com o espalhamento universal dos conceitos Cristãos, o interesse na
filosofia grega gradualmente morreu nos escritos Patrísticos.
E, isso era natural. Teologia e filosofia são distintas antes de tudo
por seu conteúdo, a pregação do Salvador na terra declarou
para os homens não ideias abstratas, mas uma vida nova para o Reino
de Deus; a pregação dos Apóstolos foi a pregação
da salvação em Cristo. Por essa razão, a teologia dogmática
Cristã tem como seu principal assunto o completo exame do ensinamento
da salvação, sua necessidade, e o caminho para ela. Em seu conteúdo
básico, a teologia é soteriológica (do grego «soteria» -
salvação). Questões de ontologia (a natureza da existência),
de Deus em si, da essência do mundo e da natureza do homem, são
tratadas na teologia dogmática de maneira muito limitada. Isso não é somente
porque elas (essas questões) nos são dadas na Sagrada Escritura
de forma limitada (e, em relação a Deus, em forma escondida),
mas também por razoes psicológicas. Silêncio referente
ao interior em Deus é uma expressão do vivo sentimento da omnipresença
de Deus, uma reverência diante de Deus, temor de Deus. No Velho Testamento
esse sentimento levou ao temor de até mesmo mencionar o nome de Deus.
A área mais importante da contemplação deles era a da
verdade da Santíssima Trindade revelada no Novo Testamento, e a teologia
Cristã Ortodoxa como um todo seguiu esse caminho.
A filosofia segue um caminho diferente. Está principalmente interessada
precisamente em questões de ontologia: a essência da existência,
a relação entre o princípio absoluto e o mundo e suas
manifestações concretas, assim por diante. A filosofia por sua
natureza vem de «skepsis», de dúvida sobre o que nossas
concepções nos contam; e mesmo quando chega a fé em Deus
(na filosofia idealista) ela raciocina sobre Deus "objectivamente",
como sobre um assunto de conhecimento frio, um assunto que é sujeito
a exame e definição racionais, a uma explanação
de sua essência e de sua relação como existência
absoluta com o mundo de manifestações.
Essas duas esferas - teologia dogmática e filosofia - também
devem ser distinguidas por seus métodos e fontes.
A fonte da teologia é a revelação divina, contida na Sagrada
Escritura e Sagrada Tradição. O carácter fundamental da
Sagrada Escritura e Tradição depende de nossa fé na verdade
delas A teologia reúne e estuda o material que é encontrado nessas
fontes, sistematiza esse material e o divide em categorias apropriadas, usando
nesse trabalho os mesmos meios que as ciências experimentais usam.
A filosofia é racional e abstracta. Ela procede não da fé,
como a teologia, mas busca se basear nos indisputáveis axiomas fundamentais
da razão deduzindo deles outras conclusões, ou então sobre
factos da ciência ou do conhecimento geral humano.
Assim sendo pode-se simplesmente dizer que a filosofia não é capaz
de elevar a religião dos pais ao grau do conhecimento.
No entanto, pelas distinções mencionadas acima, não se
deve negar inteiramente a cooperação dessas duas esferas. A própria
filosofia chega à conclusão que há limites que o pensamento
humano por sua própria natureza não é capaz de ultrapassar.
O próprio facto que a historia da filosofia durante quase toda sua duração
tem sido duas correntes - idealística e materialista - mostra que seus
sistemas dependem de uma predisposição pessoal de mente e coração;
em outras palavras que elas estão baseadas sobre algo que está além
dos limites da prova. O que está além dos limites na prova é a
esfera da fé, a fé que pode ser negativa e não religiosa,
ou positiva e religiosa. Para o pensamento religioso, o que está "acima" é a
esfera da Revelação Divina.
Nesse ponto aparece a possibilidade de uma união das duas esferas do
conhecimento, teologia e filosofia. Assim a filosofia religiosa é criada;
e no Cristianismo isso significa filosofia Cristã.
Mas a filosofia religiosa Cristã tem um caminho difícil: juntar
liberdade de pensamento, como um princípio da filosofia, com fidelidade
aos dogmas e todo o ensinamento da Igreja. "Vai pelo caminho livre, qualquer
que a mente livre te leve" diz a obrigação do pensador; "Sê fiel
a Verdade Divina", sussurra para ele a obrigação do Cristão.
Desse modo, pode-se sempre esperar que na realização prática
os compiladores dos sistemas de filosofia estarão forçados a
sacrificar, desejando ou não, os princípios de uma espera em
favor da outra. A consciência da Igreja, recebe bem tentativas sinceras
de criar uma visão do mundo filosófica Cristã harmónica;
mas a Igreja as vê como criações privadas, pessoais, e
não sanciona, a elas com sua autoridade. Em todo caso é essência
que haja uma precisa distinção entre a teologia dogmática
e a filosofia Crista, e toda tentativa de tornar dogmática em filosofia
Cristã deve ser decisivamente rejeitada. (Provavelmente a tentativa
mais bem escolhida do ponto de vista Ortodoxo, na criação de
uma verdadeira filosofia Cristã no século XIX na Rússia, é encontrada
nos ensaios filosóficos de I. M. Kireyevsky (+ 1856), um filho espiritual
do Staretz Macarius do Optina que também ajudou ao Staretz nas traduções
de Optina dos trabalhos dos Santos Padres. Infelizmente, os pensamentos religiosos
russos, na segunda metade do século XIX não seguiram a liderança
de Kireyevsky; se tal tivesse acontecido, a Ortodoxia russa teria sido poupada
das especulações neo-gnósticas de Soloviev e seguidores
tais como Bulgarov e Berdyaev, cuja influência continua nos círculos
Ortodoxos "liberais" até os dias de hoje. A filosofia de Kyreyevsky
pode muito bem ser considerada a resposta Ortodoxa a essas especulações.
(Ver Padre Alexey Young, «A Man is his Faith», London, 1980)).
c - Sobre o sistema religioso-filosófico de Vladimir S. Soloviev
O impulso para as novas correntes do pensamento filosófico
russo, foi dado, como foi dito, por Vladimir S. Soloviev, que colocou como
seu objectivo "justificar a fé nos Padres" diante da razão
de seus contemporâneos. Infelizmente, ele fez uma série completa
de desvios directos do modo de pensamento Cristão Ortodoxo, muitos desvios
dos quais foram aceitos e até mesmo desenvolvidos por seus sucessores
Aqui está uma série de pontos da filosofia de Soloviev que são
completamente diferentes e que até mesmo se afastam do ensinamento da
fé confessada pela Igreja.
1 - O Cristianismo é apresentado por ele como o mais alto grau de desenvolvimento
das religiões. De acordo com Soloviev, todas as religiões são
verdadeiras, mas unilaterais; o Cristianismo sintetiza os aspectos positivos
das religiões precedentes. Ele escreve: "Assim como a natureza
exterior só é revelada gradualmente para a mente do homem e para
o género humano, como resultado disso nós devemos falar também
de desenvolvimento experimental ou ciência natural, assim também
o princípio divino é revelado gradualmente para a consciência
do homem, e nós devemos falar da experiência religiosa e do pensamento
religioso. Desenvolvimento religioso é um processo positivo e objectivo,
uma real e mútua relação entre Deus e o homem - o processo
religioso, pode em si mesmo ser uma mentira ou um erro. "Falsa religião é em
termos uma contradição".
2 - O ensinamento da salvação do mundo, na forma que é dado
pelos Apóstolos, é posto de lado. De acordo com Soloviev, Cristo
veio á terra não para "salvar a raça humana".
Ao invés, ele veio para elevar a raça humana a um grau mais alto
na manifestação gradual do principio divino do mundo - o processo
de ascensão e deificação do homem e do mundo. Cristo é a
mais elevada ligação numa série de teofanias, e ele coroa
todas as teofanias prévias.
3 - A atenção da teologia de acordo com Soloviev é dirigida
para o lado ontológico da existência, isto é, para a vida
de Deus em si próprio, e por conta da falta de evidência para
isso na Sagrada Escritura, seus pensamentos dirigem-se para construções
arbitrárias que são racionais ou baseados na imaginação.
4 - Na vida Divina é introduzida uma essência que fica na fronteira
entre o Divino e o mundo criado: isso é chamado Sophia.
5 - Na vida divina é introduzida uma diferença entre os princípios
masculino e feminino. Em Soloviev esse ponto ainda é fraco. O Padre
Paul Florensky, seguindo Soloviev, apresenta Sofia assim: "Esse é um
grande Ser Real e Feminino que, não sendo nem Deus nem o eterno Filho
de Deus, nem um anjo, nem um homem santo, recebeu veneração tanto
do Culminador do Velho Testamento e do Fundador do Novo" (The Pillar anda
Fundation of Truthi).
6 - Na vida Divina é introduzido um princípio elementar de luta,
que compele Deus o próprio Logos a participar em um progresso definido
e subordina Deus a esse processo, que é conduzir o mundo para fora da
condição de materialismo puro e inércia para uma forma
mais elevada e mais perfeita de existência.
7 - Deus, como o Absoluto, como Deus o Pai, é apresentado como distante
e inacessível para o mundo e para o homem. Ele vai embora do mundo,
em contradição com a palavra de Deus, para uma esfera de existência
inatingível que, como existência relativa, como o mundo dos fenómenos.
Por isso, de acordo com Soloviev, é necessário um Intermediário
entre o Absoluto e o mundo. É chamado "logos" que foi encarnado
em Cristo.
8 - De acordo com Soloviev, o primeiro Adão uniu em si a natureza humana,
em um modo similar á relação mutua do Deus - homem no
Verbo encarnado; no entanto, ele violou essa relação mútua.
Se isso é assim, então deificação do homem, não é só uma
graça? Deus-homem, é uma restauração das duas naturezas.
Mas isso não está de acordo com o ensinamento da Igreja - um
ensinamento que entende a deificação só como um recebimento
de graça. São João Damasceno escreve: "Não
houve e nunca haverá outro homem composto de Divindade e humanidade",
fora Jesus Cristo.
9 - Soloviev escreve: "Deus é o Criador Todo Poderoso e o «Pantocrator»,
mas não o condutor da terra e da criação que dela procede: "A
Divindade... é incomensurável com as criaturas terrestres e pode
ter uma relação prática e moral (autoridade, domínio,
governança) somente através da mediação do homem,
que como um ser tanto divino quanto terrestre é comensurável
tanto com a Divindade quanto com a natureza material. Assim, o homem é o
sujeito indispensável no verdadeiro domínio de Deus" (The
Hystory and Future of Theocracy). Essa afirmação é inaceitável
do ponto de vista da glória e poder de Deus e, como tem sido dito, ela
contradiz a Palavra de Deus. De facto, ela não corresponde se quer a
simples observação. O homem sujeita a natureza a si não
em nome de Deus, como um intermediário entre Deus e o mundo, mas para
seus próprios propósitos e necessidades egoístas.
Os poucos pontos mencionados aqui de divergência entre as visões
de Soloviev e o ensinamento da Igreja indica a inaceitabilidade do sistema
religioso de Soloviev como um todo para a consciência Ortodoxa.
d - O ensinamento da Sabedoria de Deus na Sagrada Escritura
A palavra «Sophia» - sabedoria, é encontrada
nos livros sagrados do Velho Testamento (na tradução grega) e
do Novo Testamento.
No Novo Testamento é usada em três significados:
1 - No sentido amplo de sabedoria, entendimento: "E Jesus se fortaleceria
em espírito, cheio de sabedoria" (Lc. 2, 40); "Mas a sabedoria é justificada
por todos os seus filhos" (Lc. 7, 35).
2 - No significado da sábia economia de Deus expressa na criação
do mundo, em sua providência sobre o mundo, e na salvação
do mundo do pecado: "Ó profundidade das riquezas tanto da sabedoria,
como da ciência de Deus! Porque quem compreendeu o intento do Senhor?
Ou quem foi Seu conselheiro?" (Rom. 11, 33-34); "Mas falamos a sabedoria
de Deus oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos
para nossa glória" (1 Cor. 2, 7).
3 - Em relação ao Filho de Deus como a Sabedoria Hipostática
de Deus: "Mas pregamos-lhes a Cristo crucificado... Cristo poder de Deus
e sabedoria de Deus" (1 Cor. 1, 23-24); "Que para nós foi
feito por Deus sabedoria" (1 Cor. 1, 30).
No Velho Testamento nós encontramos em muitos lugares afirmações
acerca da sabedoria. Aqui também há três significados para
este termo. Em particular, sabedoria é falada no livro dos Provérbios
e nos livros Apócrifos: A Sabedoria de «Joshua», Filho de «Sirach».
Na maioria dos casos, a sabedoria humana é apresentada aqui como um
dom de Deus que se deve manter excepcionalmente cuidada. Os próprios
títulos dos livros, a "Sabedoria" de Salomão e a Sabedoria
de «Joshua», Filho de «Sirach», indica em que sentido
- normalmente, no sentido de sabedoria humana - deve-se entender essa palavra
aqui. Em outros livros do Velho Testamento episódios separados são
citados, os quais descrevem especialmente a sabedoria humana - por exemplo,
o famoso julgamento de Salomão.
Os livros acima mencionados introduzem-nos na direcção do pensamento
dos professores inspirados por Deus no povo judeu; esses professores inspiraram
o povo a ser guiado pela razão, não se entregar a cegas inclinações
e paixões, e manter firmemente suas acções ligadas aos
comandos da prudência, julgamento correcto, lei moral, e às bases
firmes na vida pessoal, familiar e pública.
Uma grande parte do livro dos Provérbios é dedicada a esses assuntos.
O título desse livro, "Provérbios", previne o leitor
que ele encontrará nele meios de exposição figurativos,
metafóricos e alegóricos. Na introdução do livro,
depois de indicar que ele é para "conhecimento, sabedoria, instrução",
o autor expressa a certeza que "um homem sábio... entenderá uma
parábola, e um discurso obscuro, as palavras dos sábios, e suas
adivinhações" (1, 6, Septuaginta) - Isso é, ele entenderá seu
sentido figurativo, alegórico, sem tomar todas as imagens no sentido
literal.
E de facto, adiante no livro, é revelada uma abundância de imagens
e personificações na aplicação da "sabedoria
que o homem pode possuir. Adquire sabedoria, adquire entendimento... diz à sabedoria,
tu és minha irmã; e ao entendimento chama teu parente" (Prov.
7, 4). "Não a desampares, e ela guardar-te-á; ama-a e ela
conservar-te-á... exalta-a e ela exaltar-te-á, e abraçando-a
tu, ela honrar-te-á; dará a tua cabeça um diadema de graça,
e uma coroa de glória te entregará" (Prov. 4, 6.8-9 Septuaginta).
O mesmo tipo de pensamento sobre a sabedoria humana está contido na
Sabedoria de Salomão.
Está claro que todos esses dizeres sobre sabedoria de modo algum podem
ser entendidos como o ensinamento de uma sabedoria pessoal, a alma do mundo,
no sentido «sophiológico». Um homem a possui, a obtém,
a perde; ela serve a ele; seu início é chamado "temor de
Deus"; e lado a lado com a sabedoria é também nomeado de "entendimento" e "instrução" e "conhecimento".
E de onde vem a sabedoria? Como tudo mais no mundo, tem uma fonte única:
Deus é "o guia até da sabedoria e o corrector do sábio" (Sabedoria
de Salomão 7, 15).
Um segundo grupo de proclamações na Sagrada Escritura refere-se à sabedoria
de Deus, que é a sabedoria de Deus em si. Idéias da sabedoria
em Deus estão intercaladas com ideias da sabedoria no homem.
Se a dignidade do entendimento e sabedoria no homem é tão exaltada,
quão majestosa ela é então em Deus! O escritor usa as
mais majestosas expressões possíveis de modo a apresentar o poder
e grandeza da sabedoria Divina. Aqui ele faz um largo uso de modo a apresentar
o poder e grandeza da sabedoria Divina. Aqui ele faz um largo uso de personificação.
Ele fala da grandiosidade dos planos Divinos que, de acordo com nossas concepções
humanas, parecem ter precedido a criação, porque a sabedoria
de Deus está na base de tudo o que existe, por essa razão ela
está antes de tudo, antes de qualquer coisa que existe. "O Senhor
me possui no princípio dos seus caminhos, e antes de suas obras mais
antigas. Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do
começo da terra, antes de fazer abismos... antes dos montes... eu fui
gerada. Quando Ele preparava os céus, ai estava eu" (Prov. 8, 22-25.27
Septuaginta). O autor no livro do Génesis fala da beleza do mundo, enquanto
expressa em imagens o que foi dito da criação, ("era muito
bom"). Ele diz em nome da sabedoria: "Então eu estava com
Ele e era Seu aluno: e era cada dia as suas delicias, folgando perante ele
em todo o tempo" (Prov. 8, 30).
Em todas as imagens da sabedoria citadas acima, e outras similares, não
há base para se ver num sentido directo nenhum ser espiritual pessoal,
distinto de Deus, uma alma do mundo, ou ideia do mundo. Isso não corresponde às
imagens dadas aqui: uma "essência do mundo" ideal não
poderia ser dita "presente" na criação do mundo (ver
a Sabedoria de Salomão 9, 9); somente alguma coisa exterior tanto ao
Criador quanto à criação poderia estar "presente".
Da mesma forma, ela não poderia ser um "implemento" da criação
se ela em si é a alma do mundo criado. Por essa razão, nas expressões
citadas acima é natural ver-se personificações (um dispositivo
literário), ainda que elas sejam tão expressivas a ponto de chegarem
perto de «hypostases» ou pessoas reais.
Finalmente, o escritor do livro de Provérbios é profeticamente
exaltado em pensamento até a prefiguração da Economia
de Deus no Novo Testamento que é revelada na pregação
do salvador do mundo, na salvação do mundo e do género
humano, e na criação da Igreja do Novo Testamento. Essa prefiguração é encontrada
no nono capítulo de Provérbios: "A Sabedoria já edificou
a sua casa, já lavrou as suas sete colunas. Já sacrificou as
suas vítimas, já misturou o seu vinho..." (Prov. 9, 1-2,
Septuaginta). Essa magnífica imagem é igual em poder às
profecias referentes ao Salvador nos profetas do Velho Testamento.
Desde que a economia na salvação foi realizada pelo Filho de
Deus, os Santos Padres da Igreja, e, seguindo eles os interpretadores Ortodoxos
do livro dos Provérbios em geral, referem-se ao nome "sabedoria
de Deus" que essencialmente pertence à Santíssima Trindade
como um todo, à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Filho
de Deus, como o Realizador do Conselho da Santíssima Trindade.
Por analogia com essa passagem profética, as imagens do livro de Provérbios,
que são indicados acima referentes à sabedoria de Deus (no capitulo
8) são também interpretadas como se aplicando ao Filho de Deus.
Quando os escritores do Velho Testamento, para quem o mistério da Santíssima
Trindade não estava inteiramente revelado, dizem "Em sabedoria
Ele os fez a todos " - para quem acredita no Novo Testamento, um Cristão,
no nome "Verbo" e no nome "Sabedoria" é revelada
a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Filho de Deus.
O Filho de Deus, como uma «hipóstase» da Santíssima
Trindade, contem em si todos os atributos divinos na mesma plenitude do Pai
e do Espírito Santo. No entanto, tendo manifestado esses atributos para
o mundo em sua criação e sua salvação, Ele é chamado
de Sabedoria Hipostática de Deus. Na mesma base, o Filho de Deus, pode
também ser chamado de Amor Hipostático (ver São Simeão,
o Novo Teólogo, Homilia 53); Luz Hipostática ("andai [na
luz] enquanto tendes a luz" (Jo. 12, 35), Vida Hipostática ("Tu
deste à luz a Vida Hipostática" - Cánon da Anunciação,
8); e Poder Hipostático de Deus ("lhes pregamos a Cristo, poder
de Deus", 1 Cor. 1, 24).
Arcebispo Primaz Katholikos
S.B. Dom ++ Paulo Jorge de Laureano – Vieira y Saragoça
(Mar Alexander I da Hispânea)
Última actualização deste
Link em 01 de Outubro
de 2011