Catecismo Ortodoxo
Parte II
Deus Manifestado no Mundo
1 - Deus e a Criação
a - Introdução
No princípio criou Deus os céus e a terra (Gen. 1, 1). O relato divinamente inspirado da criação do mundo por Moisés, mostrado na primeira página da Bíblia, mostra-se em exaltada grandeza, bem independente das antigas lendas mitológicas sobre a origem do mundo, bem como várias hipóteses, constantemente substituindo uma às outras, a respeito do começo e desenvolvimento da ordem do mundo. Ela é apresentada como o auxílio da mais elementar linguagem; com um vocabulário consistente e somente algumas centenas de palavras e inteiramente destituído das ideias abstratas tão necessárias para a expressão de verdades religiosas. Mas apesar de sua elementar natureza ela tem um significado eterno.
O propósito directo do visionário de Deus Moisés foi - por meio de um relato da criação - instilar em seu povo, e através dele em toda humanidade, as verdades fundamentais de Deus, do mundo e do homem.
A - De Deus. A principal verdade expressa na Génesis é a de Deus como a Única Essência Espiritual independente do mundo. As primeiras palavras do livro da Génesis, "No principio criou Deus", conta-nos que Deus é o único extra-temporal, eterno, auto-existente ser, a fonte de todo ser, e o Espírito acima desse mundo. Porque ele existia também antes da criação do mundo, seu ser e fora do espaço, não limitado nem pelo céu, porque o céu foi criado junto com a terra. Deus é Um, Deus é Pessoal, Essência Intelectual.
Depois de apresentar em ordem os estágios da criação do mundo, o escritor do Génesis conclui o seu relato com as palavras: "E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom..." (Gen. 1, 31).
B - Do Mundo. Do magnífico esquema dado por Moisés para a origem do mundo, segue-se uma série de conclusões directas a respeito do mundo, nomeadamente:
(1) Como o mundo se levantou.
a - O mundo não existe eternamente, mas apareceu no tempo.
b - Ele não se formou, mas é dependente da vontade de Deus.
c - Ele não apareceu em um único instante, mas foi criado em sequência do mais simples para o mais complexo.
d - Não foi criado por necessidade, mas pelo livre desejo de Deus.
e - Ele foi criado pelo Verbo de Deus, com a participação do Vivificante Espírito.
(2) O que a natureza do mundo é:
a - O mundo em sua essência é distinto de Deus. Ele não é:
1 - Parte da Essência de Deus;
2 - Nem uma emanação Dele;
3 - Nem seu corpo.
b - Ele não foi criado de nenhum material existente eternamente mas foi trazido a ser vindo do completo não-ser.
c - Tudo o que está na terra foi criado dos elementos da terra, foi "trazido" pela água e pela terra ao comando de Deus, excepto a alma do homem, que carrega em si mesma a imagem e a semelhança de Deus.
(3) - Quais são as consequências da criação:
a - Deus permanece em sua natureza distinta do mundo, e o mundo de Deus.
b - Deus não sofreu nenhuma perda e não adquiriu nenhum ganho para si pela criação do mundo.
c - No mundo não há nada incriado, à parte o próprio Deus.
d - Tudo foi criado muito bom - o que significa que a malignidade não apareceu junto com a criação do mundo.
c - Do homem. O homem é a mais alta criação de Deus na terra. Reconhecendo respeito no seu Criador, o glorificando, dando graças a Ele, e lutando para ser merecedor de sua misericórdia!
Mas essas coisas - glória, graças, oração - são possíveis somente sobre as bases que foram dadas no relato de Moisés sobre a criação do mundo. Sem o conhecimento de um Deus Pessoal, nós não poderíamos nos voltar para ele: nós seríamos órfãos, não conhecendo nem pai nem mãe.
Se fosse para nós reconhecermos que o mundo é co-eterno com Deus, de alguma forma independente de Deus, de algum modo igual a Deus, ou ainda nascido de uma emanação de Deus, então isso seria o mesmo que dizer que o mundo é igual a Deus em dignidade, e que o homem, como a mais desenvolvida manifestação da natureza do mundo, deveria ser capaz de se considerar como uma divindade que não teria obrigação diante de um princípio mais elevado. Tal conceito conduziria às mesmas consequências negativas e penosas, para a queda moral dos homens, como o faz o simples ateísmo.
Mas o mundo tem um inicio. O mundo foi criado no tempo. Existe um mais Elevado, Eterno, Sapientíssimo, Poderoso e Bom poder acima de nós, por Quem o espírito de um homem crente alegremente luta e para quem ele se inclina, clamando com amor: "Ó Senhor, quão harmoniosos são as tuas obras! Feitas todas com sabedoria, a terra está repleta das Tuas riquezas... A glória do Senhor seja para sempre" (Sal. 104, 24.31).
b - O modo de criação do mundo
O mundo foi criado do nada. Na verdade, melhor dizer que ele foi trazido para o ser vindo do não-ser, como os Padres da Igreja normalmente se expressam, porque se dizemos "do", nós estamos evidentemente já pensando em algo material. Mas "nada" não é material. No entanto, é condicionalmente aceitável e inteiramente permissível usar essa expressão por sua simplicidade e brevidade.
Essa criação é um trazer para o ser, vindo do completo não-ser e é mostrada em muitas passagens na Palavra de Deus: por exemplo "Deus as fez (as coisas) de coisas que não existem” (2 Macabeus 7, 28); "aquilo que se vê não foi feito do que é aparente” (Heb. 11, 3); "e (Deus) chama as coisas que não são como se já fossem" (Rom. 4, 17).
O próprio tempo recebeu o seu começo na criação do mundo; até então existia somente eternidade. A Sagrada Escritura diz também: "por Ele (Seu Filho) foram feitos os séculos".
A respeito dos dias da criação, o Bem-aventurado Santo Agostinho, em seu trabalho, A Cidade de Deus, disse: "Que tipo de dias foram eles, é extremamente difícil dizer ou talvez impossível para nós conceber, e quanto mais explicar!" (Livro 11, cap. 6, Modern Library Editora, New York, 1950, pg. 350).
"Nós vemos, de facto, que os nossos dias comuns só têm anoitecer pelo pôr-do-sol e só têm amanhecer pelo levantar do sol. Mas nos três primeiros dias da criação não existiu sol, já que é relatado que ele foi feito no quarto dia. E primeiro de tudo, a luz foi feita pela Palavra de Deus, e Deus, nós lêmos, separou a luz das trevas, e chamou a luz de dia, e as trevas de noite; mas que tipo de luz era, e por qual movimento periódico era feito o anoitecer e o amanhecer está além do alcance dos nossos sensos; nem podemos entender como era, e no entanto devemos acreditar sem hesitação nisso" (City of God, livro 11, cap. 7, pg. 351).
Deus criou o mundo por Seu pensamento, por Sua vontade, por Sua palavra, ou comando. "... pois mandou e logo foram criados" (Sal. 148, 5). Pela "Palavra" de Deus, os Padres da Igreja notam que não devemos entender aqui nenhum tipo de som articulado ou palavra como as nossas. Não, essa palavra criadora significa somente o comando ou a expressão da toda poderosa vontade de Deus, que trouxer o universo para a existência do nada.
São Damasceno escreve: "Agora, o bom e transcendental bom Deus não estava satisfeito em contemplar a Si mesmo, mas por uma superabundância de bondade viu ser bom que deveriam existir algumas coisas para se beneficiarem e participarem na Sua bondade, então ele trouxe todas as coisas do nada para o ser e criou-as, tanto visíveis quanto invisíveis, e também o homem que é feito de ambas. Por pensar Ele criou, e com o Verbo preenchendo e o espírito aperfeiçoando, o pensamento tornou-se acção" (Exact Exposition, Livro 2, cap. 2, «Fathers of The Church», tr. Pág. 205).
Assim, apesar do mundo ter sido criado no tempo, Deus tinha o pensamento de Sua criação por toda a eternidade (Santo Agostinho, Against Heresies). No entanto, nós evitamos a expressão "Ele criou o mundo de seu pensamento" para não dar ocasião a que se pense que ele criou o mundo de Sua Essência. Se a Palavra de Deus não nos dá o direito de falar do "ser pré-eterno" do mundo inteiro, assim também, na mesma base deve-se reconhecer como inaceitável a ideia da "existência pré-eterna da humanidade", uma ideia que tem tentado penetrar na nossa teologia através das correntes filosóficas-teológicas contemporâneas.
A Santa Igreja, sendo guiada pelas indicações da Sagrada Escritura, confessa a participação de todas as pessoas da Santíssima Trindade na criação. No Símbolo da Fé nós lemos: "Creio em um só Deus, Pai Todo Poderoso, Criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis; creio em um só Senhor Jesus Cristo, Filho Único de Deus... por Quem todas as coisas foram feitas... creio no Espírito Santo, Senhor e Fonte de Vida". São Irineu de Lion escreve: "O Filho e o Espírito Santo são, como se fossem as mãos do Pai" (Against Heresies, Livro 5, cap. 6). A mesma ideia é encontrada em São João de Kronstadt (My Life in Christ).
c - O motivo para a criação
A respeito do motivo para a criação na mente de Deus, a Confissão Ortodoxa e o Longo Catecismo Ortodoxo expressam-se da seguinte forma: O mundo foi criado por Deus "para que outros seres glorificando-O, possam ser participantes em Sua bondade". A ideia de misericórdia e bondade de Deus, como expressada na criação do mundo, é encontrada em muitos Salmos como nos Salmos 103 e 104 - "Bendiz, ó minha alma, ao Senhor"; que chamam à glorificação do Senhor, e dão graças à própria existência e por todas as providências de Deus. O mesmo pensamento é expresso pelos Padres da Igreja. O Bem-aventurado Teodoreto escreve: "O Senhor não tem necessidade de ninguém que O louve; mas só por Sua bondade Ele concedeu existência aos Anjos, Arcanjos, e para toda a criação". Além disso, "Deus não tem necessidade de nada; mas Ele, sendo um abismo de bondade dignou-se dar existência a coisas que não existiam". São João Damasceno diz (como vimos logo atrás): "O bom e transcendentemente bom Deus não estava satisfeito em se contemplar a Si mesmo, mas por uma superabundância de bondade viu ser bom que deveriam existir algumas coisas para se beneficiarem e participarem em Sua bondade".
d - A perfeição da criação
A Palavra de Deus e os Padres da Igreja ensinam que tudo o que foi criado por Deus foi bom, e eles indicam a boa ordem do mundo como criado pelo Bem. A criação irracional, não tendo em si nenhuma liberdade moral, moralmente nem é boa nem má. A criação racional e livre torna-se maligna quando ela se inclina para longe de Deus; isso é, seguindo a sua atracção pecaminosa e não porque ela foi criada assim. "E viu Deus que era bom" (Gen. 1, 4.10.12.18.21.25). "E eis que era muito bom" (Gen. 1, 31).
Deus criou o mundo perfeito. No entanto, o Apocalipse não diz que o mundo presente era perfeito em tal extensão que não teria necessidade de, ou seria incapaz de, um aperfeiçoamento, fosse nos dias de sua criação ou nas suas condições mais tardias e presentes. O mundo terreno em seus mais altos representantes - o género humano - eram predestinados para uma forma de vida nova e mais elevada. A Revelação Divina ensina-nos que a presente condição do mundo será substituída em algum momento por uma melhor e mais perfeita, quando existirá "novos céus e nova terra" (2 Ped. 3, 13), e a própria criação "será libertada da servidão da corrupção" (Rom. 8, 21).
A Questão: como a vida de Deus procedia antes da criação humana do mundo, o Bem-aventurado Santo Agostinho responde: "minha melhor resposta é: eu não sei". São Gregório, o Teólogo, reflecte: "Ele contempla a amada radiância de Sua própria bondade... visto que não se pode atribuir a Deus inactividade ou imperfeição, então o que ocupava o pensamento divino antes que o Todo-Poderoso reinando na ausência do tempo, criasse o universo e o adornasse com formas? Ele contemplava a amada radiosa divindade conhecida só pela divindade e para quem Deus a revelasse. A Mente criadora do mundo igualmente contemplativa, em suas grandes concepções, as formas do mundo divisadas por ele, que, mesmo que fossem trazidas subsequentemente, para Deus já estavam presentes. Com Deus, tudo está diante de Seus olhos: o que será, o que foi, e o que não é" (São Gregório, o Teólogo, Homília 4, On the World).
Para a questão, como era expressa, a omnipotência de Deus, antes que existissem o mundo, São Metódio de Patara diz: "Deus Omnipotente está fora de qualquer dependência das coisas criadas por Ele".
e - O Mundo Angélico
O primeiro e mais alto lugar na inteira escada dos seres criados é ocupado pelos espíritos puros e imateriais. Eles são seres não só comparativamente mais elevados e mais perfeitos, mas eles também tem uma influência muito importante na vida dos homens, apesar de serem invisíveis para nós.
O que nos foi revelado a nós a respeito deles? Como e quando eles vieram para a condição de ser? Que natureza lhes foi dada? São todos de igual estatura? Qual é o seu propósito e a forma de sua existência?
f - Anjos na Sagrada Escritura
O nome "anjo" significa "mensageiro". Essa palavra caracteriza bem o seu serviço para a raça humana. O género humano conheceu sobre a sua existência desde os primeiros dias do Paraíso. Nós vemos um reflexo desse facto também em outras religiões antigas, não só no Judaísmo.
Depois de que o género humano caiu no pecado e foi banido do Paraíso, um Querubim com uma espada flamejante foi posto para guardar a entrada do Paraíso (Gén. 3, 24). Abraão, quando enviou o seu servo para Naor, encorajou-o com a convicção de que o Senhor enviaria o seu anjo com ele e orientaria o seu caminho (Gén. 24, 7). Jacob viu Anjos, tanto durante o sono (na visão da escada mística, no caminho para a Mesopotâmia (Gen. 28, 12) quanto acordado (no caminho de volta para o lar para Esaú, quando ele viu um "exército" dos Anjos de Deus (Gén. 32:1 e 2). Nos Salmos, os anjos são falados frequentemente: "Louvai-o, todos os seus anjos" (Sal. 148, 2). "Aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos" (Sal. 91, 11). Similarmente, nós lemos acerca dos anjos no Livro de Job e nos Profetas, o Profeta Isaias viu Serafins rodeando o trono de Deus (cap. 6). O Profeta Ezequiel viu Querubins na visão da Casa de Deus (Cap. 10).
O Novo Testamento contem muita informação e muitas menções de anjos. Um anjo informou Zacarias da concepção do Precursor. Um anjo informou a Santíssima Virgem Maria do nascimento do Salvador e apareceu a José enquanto este dormia. Uma multidão numerosa de anjos cantou a glória da Natividade de Cristo. Um anjo anunciou a boa nova do nascimento do Salvador aos pastores. Um anjo preveniu os Magos para não retornarem a Herodes. Anjos serviram Jesus Cristo depois de Suas tentações no deserto. Um anjo apareceu para dar força a Jesus no jardim de Getsemani. Anjos informaram as mulheres Miróforas sobre a Ressurreição de Jesus. Os Apóstolos foram informados por eles sobre a Sua segunda vinda, na hora de Sua Ascensão ao céu. Anjos libertaram Pedro e outros Apóstolos (Act. 5, 19), e Pedro sózinho (Act. 12, 7-15). Um anjo apareceu para Cornélio e deu instrução a ele para chamar o Apóstolo Pedro e instrui-lo na Palavra de Deus (Act. 10:3-7). Um anjo informou o Apóstolo Paulo que ele tinha que se apresentar diante do César (Act. 27, 23-24). Uma visão de anjo é a base das revelações dadas a São João, o Teólogo e Evangelista, no Apocalipse.
g - A criação dos Anjos
No Símbolo da Fé nós lemos: "Creio em um só Deus, Criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis". O invisível, mundo angélico foi criado por Deus, e criado antes que o mundo visível. "Quando as estrelas foram feitas, todos os meus anjos me louvaram com alta voz, disse o Senhor a Job" (Job 38, 7 - Septuaginta). O Apóstolo Paulo escreve: "Porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades..." (Col. 1, 16). Os Padres da Igreja entendem que a palavra "céu" no começo do Livro do Génesis ("No começo criou Deus os céus e a terra"), não como sendo o céu físico, que foi formando depois, mas o céu invisível, o lugar de morada dos poderes do alto. Eles expressaram a ideia de que Deus criou os anjos muito antes de ter criado o mundo visível. (Ambrósio, Jerónimo, Gregório o Grande, Anastácio do Sinai) e que na criação do mundo visível os anjos já estavam diante da face do Criador e serviam-no. São Gregório, o Teólogo, reflecte sobre isso: "Desde que, para a bondade de Deus não era suficiente estar ocupada só com a própria contemplação, mas era necessário que o bem se estendesse mais e mais, para que o número daqueles que viessem a receber graça fosse tão grande quanto possível (porque essa é a característica da mais elevada bondade) - então, Deus divisou primeiro de tudo os poderes angélicos celestiais; e o pensamento tornou-se acção, que foi executada pelo Verbo, e aperfeiçoada pelo Espírito... e assim que as primeiras criaturas estavam agradando a ele, ele divisou outro mundo, material e visível, a composição ordenada do céu e da terra, e daquilo que está entre eles". São João Damasceno segue também o pensamento de São Gregório, o Teólogo (Exact Exposition, Livro 2, cap. 3).
h - A natureza dos Anjos
Por sua natureza, os anjos são espíritos activos que tem inteligência, vontade e conhecimento. Eles servem a Deus, preenchem a Sua vontade providencial, e glorificam-no. Eles são espíritos imateriais e, porque eles pertencem ao mundo invisível, eles não podem ser vistos pelos nossos olhos corporais. Os Anjos, instrui São João Damasceno: "não aparecem exactamente como eles são mas sim como Deus quer que eles apareçam. Eles aparecem nas mais diferentes formas como podem ser vistos por aqueles que os contemplam" (Exact Exposition, livro 2, cap. 3, trad. Inglesa, pag. 206). No relato do Livro de Tobias, o anjo que o acompanha e ao seu filho conta a ele de si próprio: "Todos esses dias eu simplesmente apareci para vocês e não comi ou bebi, mas vocês estavam vendo uma visão" (Tobias 12, 19). Agora, como São João Damasceno expressa: "comparado connosco, o anjo é dito ser incorpóreo e imaterial, apesar de em comparação com Deus, que só Ele é incomparável, tudo prova ser grosseiro e material - pois só a divindade é verdadeiramente imaterial e incorpórea" (Ibid, pg. 205).
i - O grau de perfeição angélica
Os anjos são espíritos perfeitos. Eles ultrapassam o homem pelo seu poder espiritual. No entanto, eles também, como seres criados, carregam em si o selo da limitação. Sendo imateriais, eles são menos dependentes que os homens de espaço e lugar, e por assim dizer, passam através de vastos espaços com extrema rapidez, aparecendo aonde quer que seja necessário que eles ajam. No entanto, não se pode dizer que eles sejam inteiramente independentes de espaço e lugar, nem que eles estejam presentes em todo lugar. A Sagrada Escritura às vezes mostra anjos descendo do céu para a terra, ás vezes subindo da terra para o céu, e assim deve-se supor que eles estejam tanto no céu quanto na terra ao mesmo tempo. (Os Santos Padres ensinam isso bastante explicitamente. Assim, São Basílio, escreve: "Nós cremos que cada um (dos poderes celestes) tem um lugar definido. Pois o anjo que estava frente a Cornélio não estava ao mesmo tempo com Felipe (Act. 10, 3; 8, 26); e o anjo que falou a Zacarias não estava ao mesmo tempo ocupando o seu próprio lugar no céu" (On the Holly Spirit, cap. 23, edição russa de Soikin, São Petesburgo, 1911, vol. 1, pág. 622). Da mesma forma São João Damasceno, ensina: "Os anjos são circunscritos, pois quando eles estão no céu eles não estão na terra, e quando eles são mandados para a terra por Deus, eles não permanecem no céu" (Exact Exposition, Livro 2, cap. 3, tradução inglesa, pág. 206)).
A imortalidade é um atributo dos anjos, e é claramente testificada pelas Sagradas Escrituras, que ensinam que eles não podem morrer (Lc. 20, 36). No entanto, a sua imortalidade não é uma imortalidade divina; isso é algo auto-existente e incondicional. Ao contrário ela depende, assim como a imortalidade da alma humana, inteiramente da vontade e misericórdia de Deus.
Como espíritos imateriais, os anjos são capazes de auto-desenvolvimento interno até ao mais alto grau. Suas mentes são mais elevadas que a mente humana. De acordo com a explanação do Apóstolo Pedro, em sua força e poder eles ultrapassam todos os governos e todas as autoridades terrenas (2 Ped. 2, 11). A natureza de um anjo é mais elevada que a natureza de um homem, como o Salmista diz quando, para exaltar o ser humano, ele mostra que o homem é pouco inferior aos anjos (Sal. 8, 5). Porém, os exaltados atributos dos anjos têm os seus limites. A Sagrada Escritura indica que eles não conhecem as profundezas da Essência de Deus, que é conhecida somente pelo Espírito de Deus: "Assim ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus" (1 Cor. 2, :11). Eles não conhecem o futuro, o qual também é conhecido somente por Deus: "Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos que estão no céu" (Mc. 13, 22). Da mesma forma eles não entendem completamente o mistério da Redenção, apesar de quererem penetrar nele: "para as quais coisas os anjos desejam bem atentar" (1 Ped. 1, 12). Eles nem mesmo conhecem todos os pensamentos humanos (3 Reis 8, 39). Finalmente, eles não podem por si próprios, sem a vontade de Deus, fazer milagres: "Bendito seja o Senhor Deus, o Deus de Israel, que só Ele faz maravilhas" (Sal. 72, 18).
j - O número e os graus dos Anjos
A Sagrada Escritura apresenta o mundo angélico como extraordinariamente grande. Quando o Profeta Daniel viu o Ancião dos Dias numa visão, foi revelado para seu espanto que "milhares de milhares O serviam e milhões de milhões estavam diante Dele" (Daniel 7, 10). "Uma multidão dos anjos celestiais, louvou a vinda para a terra do Filho de Deus" (Lc. 2, 13).
"Calculem", diz São Cirilo de Jerusalém, "quantas são as nações romanas; calculem quantas tribos bárbaras vivem agora, e quantos morreram nos últimos cem anos; calculem quantas nações foram enterradas durante os últimos mil anos; calculem todos de Adão até hoje. Na verdade é uma grande multidão; mas ainda é pouco, porque os anjos são muito mais. Eles são as noventa e nove ovelhas, mas o ser humano é a uma" (Mt. 18, 12). Pois de acordo com a extensão do espaço universal, nós devemos calcular o número de seus habitantes. A terra inteira não é senão um ponto no meio do céu, e mesmo assim contem tão grande multidão; que multidão deve conter o céu que envolve a terra? E o céu dos céus não devem conter números inimagináveis? E está escrito, milhares e milhares O serviam e milhões de milhões estavam diante Dele; não que a multidão fosse só desse tamanho, mas o Profeta não conseguiu expressar mais do que isso" (São Cirilo de Jerusalém, Catechetica Lectures, 15, 24, tradução Eerdmans, pgs. 111-112).
Com tal multidão de anjos é natural supor-se que no mundo dos anjos assim como no mundo material, existam vários degraus de perfeição, e portanto vários estágios, ou graus hierárquicos, dos poderes celestes. Assim, a Palavra de Deus chama alguns deles de "anjos" e outros de "arcanjos" (1 Tess. 4, 16; Judas 1, 9).
A Igreja Católica Ortodoxa, guiada pela visão de antigos escritores da Igreja e dos Santos Padres, e em particular pelo trabalho, “A Hierarquia Celeste”, que leva o nome de São Dinis, o Aeropagita, divide o mundo angélico em novos coros ou categorias, e esses nove em três hierarquias, com três categorias em cada. Na primeira hierarquia estão aqueles que estão mais perto de Deus, são: os Tronos, os Querubins e os Serafins. Na segunda, hierarquia média, estão os: Poder, Potestade e Domínio. Na terceira, mais próximas de nós, estão os: Anjos, Arcanjos e Principados (The Orthodox Confession).
Nós encontramos essa enumeração dos noves coros de anjos nas Constituições Apostólicas (As "Constituições Apostólicas" são uma coleção de textos dos séculos IV e V sobre a doutrina, louvação e disciplina Cristã que dão muita informação sobre a vida da Igreja nos primeiros tempos - apesar de não necessariamente no tempo dos Apóstolos. Tendo algum respeito por ser um texto Cristão antigo, mais devido a algumas adições feitas a ele em diferentes épocas, não tem autoridade da Igreja que é gozada por outros textos dos primeiros tempos. Ele tem que ser distinguido dos "Cánones Apostólicos" que foram aceites pelo Quinisexto Concílio (692) como autorizado para a Igreja, e ressalte-se que esse mesmo Concílio rejeitou as Constituições Apostólicas como um todo por conta de "material adúltero" que foi acrescentado a elas (Cánon 2, Eerdmans Seven Ecumenical Concils, p. 361), em Santo Inácio, o Teóforo, Gregório Teólogo e Crisóstomo; mais tarde em São Gregório Dialoguista, João Damasceno e outros. Aqui estão as palavras de São Gregório Dialoguista sobre esse assunto: "Nós aceitamos nove categorias de anjos, porque por testemunho da Palavra de Deus nós conhecemos sobre os Anjos, Arcanjos, Potestades, Autoridades, Principados, Dominações, Tronos, Querubins e Serafins. Assim, a respeito da existência de Anjos e Arcanjos, quase todas as páginas da Sagrada Escritura testemunham; dos Querubins e Serafins como são bem conhecidos, os livros proféticos falam frequentemente; o Apóstolo Paulo enumera outras quatro categorias em sua Epístola aos Efésios, dizendo que Deus (o Pai) colocou seu Filho "acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio" (Ef. 1, 21). E em sua Epístola aos Colossenses ele escreve: "Nele foram criadas todas as coisas que há no céu e na terra visíveis e invisíveis, sejam Tronos, Dominações, sejam Principados, sejam Potestades" (Col. 1, 16). E assim, quando juntamos Tronos para esses quatro do qual fala aos Efésios, isto é, Principado, Poder, Potestade e Domínio nós temos cinco categorias separadas, e quando juntamos a elas os Anjos, Arcanjos, Querubins e Serafins, está claro que existem nove categorias de anjos.
Na verdade, voltando aos livros da Sagrada Escritura, nós encontramos os nomes das nove categorias mencionadas acima; mais do que nove não são mencionadas. Assim, nós lemos o nome "Querubim" no livro da Génesis 3, 24; nos Salmos 80 e 99 e em Ezequiel 1 e 10. "Serafim" nós encontramos em Isaías 6; "Poderes" nós encontramos na Epístola aos Efésios 1 e em Romanos 8; "Trono", "Principado", Domínios", Potestades" em Colossenses 1, e Efésios 1 e 3; "Arcanjos" em 1 Tess. 4, e Judas 9; e "anjos" em 1 Ped. 3, Romanos 8, e outros livros. Sobre essa base o número de categorias dos anjos é usualmente limitado no ensinamento da Igreja a nove.
Certos Padres da Igreja expressam sua pia opinião privada que a divisão dos anjos em nove categorias inclui somente aqueles nomes e graus que foram revelados na Palavra de Deus, mas não incluem muitos outros nomes e graus que não foram revelados a nós nesta vida presente mas que serão conhecidos somente na vida futura. Essa ideia é desenvolvida por São João Crisóstomo, pelo Bem-aventurado Teodoreto e o Bem-aventurado Teofilacto. "Existem", diz Crisóstomo, "na verdade existem outros poderes cujos nomes nós não conhecemos... Anjos, Arcanjos, Tronos, Domínios, Principados, Potestades não são os únicos habitantes dos céus; existem também inumeráveis outros tipos, e inimaginavelmente muitas classes que palavras não são capazes de descrever. E como é evidente que existem poderes além daqueles mencionados acima e poderes cujos nomes nós não conhecemos? O Apóstolo Paulo tendo falado de uns, menciona os outros quando ele testemunha de Cristo "...pondo-o à Sua direita nos céus, acima de todo o Principado, e Poder e Potestade e Domínio, e de todo nome que se nomeia, não só nesse século mas também no vindouro" (Ef. 1, 20-21). Vêem que existem certos nomes que só serão conhecidos então, mas que são desconhecidos agora? Assim, ele também diz: "... de todo o nome que se nomeia, não só nesse século mas também no vindouro". Essa opinião é tomada pela Igreja, como opinião privada.
Em geral, os antigos pastores consideravam a doutrina da hierarquia celeste, mística. "Quantas categorias de seres celestes existem" reflecte São Dinis na Hierarquia Celeste, "de que tipo elas são, e de que modo os mistérios de sua sacra ordem são executados, só, é conhecido precisamente por Deus, que é a Causa da hierarquia deles. Da mesma forma, eles mesmos conhecem seus próprios poderes, luz e ordem além desse mundo. Mas nós podemos falar disso somente até ao grau que Deus nos revelou através dos próprios poderes celestes, como os únicos que conhecem a si próprios" (Hierarquia Celeste, cap. 6). Similarmente, o Bem-aventurado Santo Agostinho reflecte, "que há Tronos, Domínios, Principados e Potestades nas mansões celestes, eu creio sem hesitação e eles são distintos, uns dos outros, disso não tenho dúvidas; mas de que tipo são eles, e em que precisamente eles são distinguidos entre si, eu não sei".
Na Sagrada Escritura, para alguns dos anjos mais elevados são dados nomes próprios. Existem dois de tais nomes nos livros canónicos: “Michael ou Miguel” (que significa "quem é igual a Deus"? - Daniel 10, 13, 12, 1; Judas 1, 9; Apocalipse 12, 7-8) e Gabriel ("Homem de Deus" - Daniel 8, 16, 9, 21; Lucas 1, 19,26). Três anjos são mencionados por nome nos livros não canónicos: Rafael ("Ajuda de Deus" - Tobias 3, 17, 12, 12-15); Uriel ("Fogo de Deus" - III Esdras 4, 1, 5-20) e Salatiel ("Oração para Deus" - III Esdras 5, 16). À parte esses a pia tradição atribui nomes para dois outros anjos: Jegudiel ("Louvação de Deus") e Barachier ("Bênção de Deus"); esses nomes não são encontrados nas Sagradas Escrituras. Além disso, no segundo Livro de Esdras há menção ainda a um outro: Jeremiel ("a Altura de Deus" - 2 Esdras 4, 36); mas julgando o contexto dessa passagem, esse nome é o mesmo de Uriel.
Assim, nomes foram dados para sete dos anjos maiores, correspondendo às palavras do Apóstolo João, o Teólogo, no Apocalipse: "Graça e paz seja convosco de parte Daquele que é, e que era, e que há de vir, e da dos sete espíritos que estão diante do Seu trono" (Apc. 1, 4).
l - O ministério dos Anjos
Qual finalmente é o propósito dos seres do mundo espiritual? É evidente que eles foram originados por Deus para serem o mais perfeito reflexo da sua grandeza e glória, com inseparável participação em sua beatitude. Tem sido dito a respeito dos céus visíveis que "os céus declaram a glória de Deus", então muito mais é o objectivo dos céus espirituais. É por isso que São Gregório, o Teólogo, os chama de "reflexos da luz perfeita", ou luzes secundárias.
Os anjos das classificações que estão próximos da raça humana são apresentados na Sagrada Escritura como arautos da vontade de Deus, guias dos homens, e servos de sua salvação. O Apóstolo Paulo escreve: "Não são porventura todos eles espíritos ministradores, enviados para servir a favor daqueles que hão-de herdar a salvação?" (Heb. 1, 14).
Não só os anjos cantam hinos à glória de Deus, mas também o servem nos trabalhos da sua providência para o mundo material e sensível. Desse serviço os Santos Padres falam frequentemente: "Alguns deles ficam em frente o grande Deus; outros por sua cooperação, sustentam o mundo inteiro" (São Gregório, o Teólogo, "Mystical Hymns", Homilia 6). Os anjos "são indicados para o governo dos elementos e dos céus, do mundo e de tudo que está nele" (Atenágoras). "Deles, diferentes indivíduos abraçam diferentes partes do mundo, ou são indicados para diferentes distritos do universo, pois ele sabe quem ordenou e distribuiu tudo; combinando todas as coisas em uma, somente com o consentimento do Criador de todas as coisas" (São Gregório, o Teólogo, Homilia 28, tradução Eerdmans, pg. 300).
Em alguns escritores da Igreja é encontrada a opinião de que anjos especiais são colocados sobre aspectos separados do reino da natureza - o inorgânico, o orgânico, e o animal (Origenes, Bem-aventurado Santo Agostinho). Essa opinião tem a sua fonte no Apocalipse, onde é feita menção dos anjos, que de acordo com a vontade de Deus, estão encarregados de certos elementos da terra. O Visionário dos mistérios, São João, escreve: "E ouvi o anjo das águas que dizia:..." (Apc. 20, 5). E noutra passagem diz: "...vi quatro anjos que estavam sobre os quatro cantos da terra, retendo os quatro ventos da terra, para que nenhum vento soprasse sobre a terra, nem sobre o mar, nem contra árvore alguma" (Apc. 7, 1); e em: "E saiu do altar outro anjo, que tinha poder sobre o fogo e clamou" (Apc. 14, 18). Na visão do Profeta Daniel existem anjos a quem Deus confiou o cuidado com a sorte dos povos e reinos que existem sobre a terra (Mt. 18, 10).
A Igreja Ortodoxa acredita que todo homem tem o seu próprio anjo da guarda, se ele não o afastou de si próprio por uma vida ímpia. O Senhor Jesus Cristo disse: "Vede, não desprezeis alguns desses pequeninos, porque Eu vos digo que os seus anjos nos véus sempre vêem a face de meu Pai que está nos céus" (Mt. 18, 10).
m - Homem - A Coroa da Criação
Na escada da criação terrena, o homem é colocado no degrau mais alto, e em relação a todos os seres terrestres ele ocupa a posição reinante. Sendo terreno, de acordo com seus dons ele se aproxima dos seres celestes, pois ele é "pouco menor que os anjos" (Sal. 8, 5). E o Profeta Moisés descreve a origem do homem desse modo: "Depois que todas as criaturas da terra foram criadas, e Deus disse, Façamos o homem à Nossa imagem, conforme nossa semelhança, e que ele tenha domínio sobre os peixes do mar sobre as aves dos céus... e sobre toda a terra... E criou Deus o homem à Sua imagem; à imagem de Deus o criou" (Gén. 1, 26-27).
1 - O conselho de Deus, que não é indicado na criação das outras criaturas da terra, fala por si próprio claramente do facto que o homem era para ser uma criação especial, distinta das outras, a mais alta, a mais perfeita na terra, tendo também um propósito mais elevado no mundo.
2 - O conceito do alto propósito do homem e seu especial significado é enfatizado ainda mais pelo facto de que o conselho de Deus ordenou que o homem fosse criado "à imagem e semelhança de Deus" e que de facto ele foi criado á imagem de Deus. Toda a imagem necessariamente pressupõe uma similaridade com seu arquetipo; consequentemente, a presença da imagem de Deus no homem testemunha sobre a reflexão dos atributos de Deus na natureza espiritual do homem.
3 - Finalmente, certos detalhes da criação do homem que são dados no segundo capítulo da Génesis enfatizam mais uma vez a proeminência especial da natureza humana. Para ser preciso é dito ali: "E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida. E o homem foi feito alma vivente" (Gén. 2, 7). Duas acções, ou dois aspectos das acções, são distinguidos aqui, e elas devem ser entendidas como simultâneas: a formação do corpo, e a doacção de vida para ele. São João Damasceno nota: "O corpo e a alma foram formados ao mesmo tempo, não um antes e o outro depois, como os delírios de Orígenes consideravam" (Exact Exposition, livro 2, cap. 12 "On man"). De acordo com a descrição do livro da Génesis, Deus criou o corpo do homem de já existentes elementos terrestres, e Ele criou-o de um modo muito especial: não por seu comando ou palavra somente, como foi feito na criação de outras criaturas, mas por sua acção directa. Isso mostra que o homem, mesmo em sua organização corporal, é um ser que ultrapassa todas as outras criaturas desde o começo de sua existência. Além disso, é dito que Deus soprou em sua face o sopro da vida e que o homem tornou-se alma vivente. Como alguém que recebeu o sopro da vida, nessa expressão figurativa, da boca do próprio Deus, o homem é então uma união viva e orgânica do terreno com o celeste, do material com o espiritual.
4 - Daí recorre a visão exaltada do corpo humano como é mostrada geralmente na Sagrada Escritura. O corpo deve servir como companheiro, órgão e mesmo companheiro trabalhador da alma. Depende da alma rebaixar-se tanto que se transforme numa escrava do corpo, ou, sendo guiada por um espírito iluminado, tornar o corpo seu obediente executor e companheiro trabalhador. Dependendo da alma, o corpo pode ser um vaso de impureza pecaminosa e loucura ou transformar-se num templo de Deus, participando com a alma na glorificação de Deus. Isso é ensinado na Sagrada Escritura (Rom. 13, 14; Gal. 3, 3; 1 Cor. 9, 27; Gal. 5, 24; Jo. 7, 9; 1 Cor. 3, 16-17; 1 Cor. 6, 20). Mesmo com a morte do corpo, a ligação da alma com o corpo não é cortada para sempre. Virá o tempo quando os corpos dos homens se levantarão numa forma renovada e serão unidos de novo com suas almas, agora para sempre, para tomar parte em eterna bênção ou tormento, correspondendo às boas ou más obras realizadas pelos homens com a participação do corpo no curso da vida terrena (2 Cor. 5, 10).
Uma visão ainda mais exaltada é instilada em nós pela palavra de Deus com respeito à natureza da alma. Na criação da alma Deus não tomou nada da terra, mas concedeu-a ao homem somente pelo seu próprio sopro criativo. Isso mostra claramente que, na concepção da Palavra de Deus, a alma humana é uma essência completamente separada do corpo e de todo material e compostos de elementos, tendo uma natureza não terrena, mas acima do mundo, celeste. A elevada proeminência da alma do homem, comparada com tudo que é terreno foi expressa pelo Senhor Jesus Cristo nas palavras: "Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma?" (Mt. 16, 26). O Senhor instrui seus discípulos: "E não temais o que matam o corpo, e não podem matar a alma" (Mt. 10, 28).
A respeito da exaltada dignidade da alma, São Gregório, o Teólogo, expressa-se assim: "A alma é o sopro de Deus, e sendo celeste, ela suporta ser misturada com aquilo que é do pó. É uma luz fechada numa caverna, mas ainda é divina e inextinguível... O Verbo falou, e tendo tomado uma parte da terra recém-criada, com Suas mãos imortais firmou minha imagem e concedeu a ela a Sua vida; porque Ele mandou para ela o espírito, que é um raio da invisível divindade" (Homilia 7, "On the Soul").
Apesar disso, não se pode tornar tais exaltadas expressões figurativas dos Santos Padres em base para ensinar que a alma é "divina" no sentido completo da palavra, e que consequentemente, ela teve uma existência eterna própria antes de sua encarnação num homem terreno em Adão! (essa visão é encontrada nas correntes teológicas-filosóficas contemporâneas que seguem V. S. Socoviev). O posicionamento correcto de que a alma é de origem celeste não significa que ela é divina em essência. "Ele soprou o fôlego da vida" (Gén. 2, 7) é uma expressão antropomórfica, e não há base para entende-la como significando que ele deu alguma coisa de Sua substância divina. Lembremo-nos que o respirar do homem não é um "expirar" elementos da própria natureza humana, nem mesmo de sua essência física. Da mesma forma da expressão Bíblica não se pode tirar a conclusão de que a alma procede da Essência de Deus nem que é um elemento da Divindade. Crisóstomo escreve: "Certos insensatos, sendo levados por suas próprias concepções, sem pensar em nada de um modo que se ajuste à maneira de Deus, e sem prestar qualquer atenção à adaptação das expressões (das Escrituras), ousam dizer que a alma procedeu da Essência de Deus. Ó frenesi! Ó loucura! Quantos caminhos de perdição o demónio abriu para aqueles que querem servi-lo! Para se entender isso, contemplem os caminhos opostos pelos quais vão essas pessoas: algumas, centram na frase, "Ele soprou", dizem que as almas procedem da Essência de Deus; outros, ao contrário, afirmam que as almas são convertidas na Essência das mais baixas criaturas irracionais. O que pode ser pior do que tal loucura?" (comentário sobre o livro da Génesis).
Que São Gregório, o Teólogo, falou da divindade da alma não no estrito senso da palavra é evidente em outra Homília sua: "A natureza de Deus e a natureza do homem não são idênticas; ou para falar mais genericamente, a natureza do divino e a natureza do terreno não são idênticas. Na natureza divina, tanto a existência em si quanto tudo nela que tem existência são imutáveis e imortais; pois naquilo que é constante; tudo é constante. Mas o que é verdade na nossa natureza? Ela flui, é corrupta, e sofre mudança após mudança" (Homilia 19 "On Julian).
Nós já falamos no capítulo sobre os Atributos de Deus (sobre Deus como espírito) das questões sobre como se deve entender expressões antropomórficas acerca de Deus. Citemos aqui só o argumento do Bem-aventurado Teodoreto: “Quando ouvimos no relato de Moisés que Deus tomou pó da terra e formou o homem, e quando nós procuramos o significado dessa frase, nós nela descobrimos uma especial boa disposição de Deus para com a raça humana. O grande Profeta nota, em sua descrição da criação, que Deus criou todas as outras criaturas por sua palavra, enquanto o homem foi criado por suas próprias mãos. Mas assim como nós entendemos pela "palavra" não um comando, mas só a vontade, assim também na formação do corpo, (nós deveríamos entender) não a acção das mãos, mas a grande atenção para com esse trabalho. Pois do mesmo modo que agora, por sua vontade, o fruto é gerado num ventre materno, e a natureza segue as leis que Ele lhe deu desde o início - assim também então, por sua vontade foi formado o corpo humano da terra e pó virou carne.” Em outra passagem o Bem-aventurado Teodoreto expressa de modo geral: "Nós não dizemos que a divindade tem mãos ... mas nós afirmamos que cada uma nessas expressões indica um muito maior cuidado da parte de Deus para com o homem, do que para as outras criaturas" (citado em Dogmatic Theology do Metropolitan Macarius, vol I, p. 430-431).
n - A alma como uma substância independente
Os antigos Padres da Igreja e professores, seguindo estritamente a Sagrada Escritura no ensinamento sobre a independência da alma e o seu valor nela própria, explicaram e revelaram a distinção da alma e do corpo para refutar a opinião materialista que a alma é só uma expressão da harmonia dos membros do corpo, ou é o resultado da actividade física do corpo, e que ela não tem sua própria substância ou natureza particular. Apelando para a simples observação, os Padres da Igreja mostram:
a - que é característico da alma governar as lutas do corpo, e característica do corpo aceitar a essa governança. (Atenágoras e outros).
b - que o corpo é, como foi, uma ferramenta ou instrumento de um artista, enquanto a alma é o artista (São Irineu, São Gregório de Nissa, São Cirilo de Jerusalém e outros).
c - que a alma não é incondicionalmente sujeita aos impulsos do corpo; ela é mesmo capaz de entrar em guerra com os esforços do corpo assim como com alguma coisa estranha e hostil a ela mesma, e é capaz de ganhar uma vitória sobre o corpo, mostrando assim que ela não é a mesma coisa que ele mas é uma essência invisível, é de natureza diferente, superando toda natureza corpórea (Origines).
d - que ela é intangível e intocável, e não é nem sangue, nem ar, nem fogo mas um princípio auto-movente (Lactantius).
e - que a alma é um poder que põe todos os membros do organismo em completa harmonia e total unidade (São Atanásio, o Grande, e São Basílio o Grande).
f - que a alma possui razão, auto-consciência, e livre arbítrio. (Origines e outros).
g - que o homem, enquanto está em seu corpo na terra, mentalmente pensa naquilo que é celeste e o contempla; sendo mortal em seu corpo, ele raciocina sobre imortalidade e frequentemente, sem amor pela virtude, ele traz para si mesmo o sofrimento e morte; tendo um corpo que é temporal, com a sua mente ele contempla o eterno e luta por ele, desprezando aquilo que está sob seus pés. O corpo nunca imaginaria tais coisas (São Atanásio, o Grande).
h - que falando na verdadeira natureza da alma, os Padres e professores da Igreja apontam para a simplicidade e imaterialidade da alma, como opostas à complexidade e crueza material do corpo; eles indicam a sua invisibilidade e completa ausência de forma, e em geral para o facto de que ela não está sujeita a nenhuma medição (espaço, peso, etc...) a que o corpo está sujeito (Orígenes e outros).
Com relação ao facto que as condições do corpo são reflectidas nas actividades da alma, e que essas condições podem enfraquecer ou até corromper a alma - por exemplo durante doenças, idade avançada, ou bebedeira - os Padres da Igreja frequentemente comparam o corpo a um instrumento usado em pilotagem. Os diferentes graus das manifestações da alma no corpo testemunham só a instabilidade do instrumento - o corpo. Essas condições do corpo que são desfavoráveis para a manifestação da alma podem ser comparadas a uma súbita tempestade no mar que impede o piloto de manifestar sua arte mas não prova que ele está ausente. Um outro exemplo, pode-se pegar uma harpa desafinada, da qual nem o melhor musicista pode tirar sons harmónicos (Lactantius). Assim também, cavalos fracos não dão oportunidade para um cavaleiro demonstrar suas habilidades (Bem-aventurado Teodoreto).
Certos Padres antigos (Santo Ambrósio, o Papa São Gregório Magno, São João Damasceno), enquanto reconhecendo a espiritualidade da alma como distinta da do corpo, ao mesmo tempo atribuem uma certa materialidade ou corporalidade comparativa, à alma. Por esse suposto atributo da alma eles tem em mente distinguir a espiritualidade da alma humana, assim como dos anjos, da mais puríssima espiritualidade de Deus, em comparação com a qual tudo parece ser material e cru.
o - A origem das almas
Como a alma de cada homem se origina não é completamente revelada na Palavra de Deus; é "um mistério conhecido só por Deus" (São Cirilo de Alexandria), e a Igreja não nos dá um ensinamento estritamente definido sobre esse assunto. Ela decididamente rejeita a visão de Orígenes, que foi herdada da filosofia de Platão, a respeito da pré-existência das almas e segundo tal teoria as almas vêm para a terra de um mundo mais elevado. Esse ensinamento de Orígenes e os Origenistas foram condenados pelo Quinto Concílio Ecuménico.
No entanto, esse decreto conciliar não estabelece se a alma é criada das almas dos pais de um homem e só nesse sentido geral constitui uma nova criação de Deus, ou se cada alma é criada imediatamente e separada por Deus, sendo junta num momento definido ao corpo que está sendo ou já foi formado. Na visão de certos Padres da Igreja (Clemente de Alexandria, João Crisóstomo, Efrém o Sírio, Teodoreto), cada alma é criada separadamente por Deus, e algumas vezes referem-se à união delas com o corpo como ocorrendo no quadragésimo dia da formação deste (a teologia católica-romana é decididamente inclinada à visão de que cada alma é criada separadamente; essa visão tem sido apresentada dogmaticamente em várias bulas papais, e o Papa Alexandre VII ligou com essa visão da Imaculada Concepção da Santíssima Virgem Maria).
Na visão de outros professores e Padres da Igreja (Tertuliano, Gregório o Teólogo, Gregório de Nissa, Macarius o Grande, Anastácio o Presbítero), alma e corpo recebem o seu início simultaneamente e amadurecem juntos; a alma procede das almas dos pais assim como o corpo procede dos corpos dos pais. Dessa forma a "criação" é entendida aqui num sentido amplo como a participação do poder criativo de Deus que está presente e é essencial em todo lugar, para todo tipo de vida. A base dessa visão é o facto que na pessoa do nosso antepassado Adão, Deus criou a raça humana: "E de um só fez toda a geração dos homens" (Act. 17, 28). Disso segue que em Adão a alma e o corpo de cada homem foram dados potencialmente. Mas o decreto de Deus é trazido à realidade de modo tal que Deus segura toda as coisas em Sua mão: "... pois Ele mesmo é quem dá a todos a vida, e a respiração, e todas as coisas" (Act. 17, 25). Deus, tendo criado, "continua a criar".
São Gregório, o Teólogo diz: "Assim como o corpo, que foi originalmente formado em nós do pó, tornou-se subsequentemente a corrente dos corpos humanos e não foi cortado da raiz primeiro-formada, em um homem incluindo outros - assim também a alma tendo sido soprada por Deus, desde aquele tempo vem junto na composição formada pelo homem, nascido há pouco, e o da semente original (São Gregório evidentemente se refere aqui à semente espiritual) sendo atribuída a muitos e sempre preservando uma forma constante em membros mortais... Assim como o sopro em uma flauta musical produz sons dependendo da largura da flauta, assim a alma, aparecendo sem força em um corpo enfermo, torna-se manifesta conforme o corpo ganha forças e reveza então toda a sua inteligência" (Homilia 7, "On the Soul"). São Gregório de Nissa tinha a mesma visão.
Em seu diário, São João de Kronstadt tem essa observação: "O que são as almas humanas? Elas são uma e a mesma alma, um e o mesmo sopro de Deus, que Deus soprou em Adão, que de Adão até agora está disseminado em toda raça humana. Por isso todos os homens são o mesmo como só um homem, ou como uma árvore da humanidade. Disso decorre o mais natural mandamento baseado na unidade de nossa natureza: "Amarás o Senhor teu Deus (Teu protótipo, Teu Pai) de todo coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo (pois quem é mais próximo a mim do que um homem que é como eu e do mesmo sangue que eu?) como a ti mesmo" (Lc. 10, 27). Há uma necessidade natural de cumprir esse mandamento.
p - A imortalidade da alma
A fé na imortalidade da alma é inseparável da religião em geral, e ainda mais, compreende um dos objectos fundamentais da Fé Cristã.
Essa ideia também não é estranha ao Velho Testamento. Ela é expressa nas palavras do Livro do Eclesiastes: "E o pó volte à terra, como era e o espírito volte a Deus, que O deu" (Ecles. 12, 7). O relato completo nos segundos e terceiros capítulos do Génesis - das palavras de alerta de Deus: "Mas da árvore da ciência do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás" (Gén. 2, 17) - e a resposta para a questão da aparência de morte no mundo, e assim mesmo é em si uma expressão da ideia de imortalidade. A ideia de que o homem foi pré-ordenado à imortalidade, que imortalidade é possível, é contida nas palavras de Eva: "Do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais" (Gén. 3, 3). O mesmo pensamento é expresso pelo Salmista nas Palavras do Senhor: "Eu disse: Vós sois deuses, e vós outros sois todos filhos do Altíssimo. Todavia, como homens morrereis e caireis como qualquer dos príncipes" (Sal. 81, 67).
Deve-se enfatizar o facto de que a ideia de imortalidade está presente sem nenhuma dúvida no Velho Testamento, porque existe uma opinião de que os Judeus não tinham fé na imortalidade da alma! Nos relatos de Moisés existem indicações de Fé na imortalidade da alma. A respeito de Enoch, Moisés remarca que "não se viu mais; porquanto Deus para si o tomou" - isto é, ele foi para Deus sem passar pela morte (Gén 5, 24). Das expressões bíblicas referentes às mortes de Abraão (Gén. 25, 8), Aarão e Moisés (Dt. 32, 50), "e se recolheu a seus povos", não é lógico entender-se que isso significa que eles foram postos no mesmo túmulo ou lugar, ou ainda na mesma terra onde estava seu povo, porque cada um desses justos do Velho Testamento morreu não na terra dos seus ancestrais mas em novos territórios de seus reassentamentos (Abraão) ou de suas viagens (Aarão e Moisés). O Patriarca Jacob, tendo recebido notícias que o seu filho tinha sido feito em pedaços por bestas feras, diz: "... Com choro hei de descer ao meu filho até a sepultura..." (Gén. 37, 35 - septuaginta). "Sepultura" significa aqui claramente não o túmulo mas o lugar onde as almas moram. Essa condição da alma após a morte foi expressa no Velho Testamento como uma descida ao mundo inferior; isto é, uma condição triste onde até a oração do Senhor não é ouvida. Isso é expresso em numerosas passagens no livro de Job e nos Salmos.
Mas já no Velho Testamento, especialmente quando a chegada do Salvador se aproxima, e ouvindo a esperança de que as almas dos homens justos venham a escapar dessa condição triste. Por exemplo, na Sabedoria de Salomão nós encontramos: "As almas dos justos estão na mão de Deus, e nenhum tormento neles tocará... Os justos vivem para sempre, e sua recompensa é com o Senhor" (3, 2; 5, 15). A esperança da futura libertação do Hades, das almas dos justos é expressa nas palavras do Salmista: "... a minha carne repousará segura. Pois não deixarás minha alma no inferno, nem permitirás que Teu santo veja corrupção" (Sal. 16, 9-10; Sal. 49, 15).
O Senhor Jesus Cristo com frequência aponta para a imortalidade da alma como a base de uma vida piedosa, e ele acusa os Saduceus, que negavam a imortalidade. Em sua conversa de despedida com os seus discípulos o Senhor conta a eles que ele estava indo preparar um local para eles para que eles pudessem estar onde ele próprio estaria (Jo. 14, 2-3). E para o bom ladrão lhe disse: "Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso" (Lc. 23, 43).
No Novo Testamento, falando-se genericamente, a verdade da imortalidade da alma é o objecto de uma completa revelação, constituindo-se numa das partes fundamentais da Fé Cristã. Essa verdade inspira um Cristão, enchendo sua alma com a jubilosa esperança de vida eterna no Reino do Filho de Deus. São Paulo escreve: "...para mim o morrer é ganho... tendo o desejo de partir, e estar com Cristo..." (Filip. 1, 21.23). “Porque sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos de Deus um edifício, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus. E por isso também gememos, desejando ser revestidos da nossa habitação, que é do céu” (2 Cor. 5, 1-2).
Nem é necessário dizer que os Santos Padres e professores da Igreja pregaram unânimes a imortalidade da alma somente com a seguinte distinção: alguns reconheciam ser a alma imortal por natureza, enquanto outros - a maioria - diziam ser a alma imortal por graça de Deus. "Deus quer que a alma viva" (São Justino, o Mártir); "a alma é imortal pela graça de Deus que a fez imortal" (São Cirilo de Jerusalém e outros). Os Santos Padres enfatizam assim a diferença entre a imortalidade do homem e a imortalidade de Deus, que é imortal pela Essência de sua natureza sendo por isso "Aquele que tem Ele só a imortalidade" de acordo com as Sagradas Escrituras (1 Tim. 6, 16).
A observação mostra que a fé na imortalidade da alma sempre foi intrinsecamente ligada na fé em Deus, em tal extensão que o grau da primeira é determinado pelo grau da última. Mais viva, a fé em Deus, mais firme e sem dúvidas é a fé na imortalidade da alma. E, ao contrário mais fraca e sem em vida a fé em Deus, maiores são as ondas de dúvidas que se levantam contra a verdade da imortalidade da alma. Alguém que perdeu ou abafou completamente a fé em Deus usualmente cessa de acreditar na imortalidade da alma ou na vida futura. Isso é facilmente compreendido. Um homem recebe o poder da fé da própria fonte de vida, e se ele conta sua ligação com essa fonte, ele perde esse fluxo de poder vivo, Ai nenhuma prova racional ou persuasão será capaz de enfiar o poder da fé nele.
Pode-se também concluir o oposto. Nas confissões e visões do mundo - ainda que sejam Cristãs - onde o poder da fé na existência activa da alma além do túmulo ficou ofuscada, onde não há orações em lembrança dos mortos, a própria fé Cristã está em condição de declínio. Alguém que acredita em Deus e reconhece o amor de Deus não pode permitir-se o pensamento que o seu Pai celestial queria cortar completamente sua vida e privá-lo da ligação com ele, como uma criança que ama a sua mãe e é amada por ela, por sua vez, não acredita que a mãe não queira que ela, a criança, tenha vida.
Pode-se certamente dizer que na Igreja Ortodoxa a aceitação da imortalidade da alma ocupa um lugar central no sistema de ensinamento e na vida da Igreja. O espírito do «Typicon» da Igreja, o livro que contem os Ofícios Divinos e as orações separadas suporta inteiramente e anima nos fiéis essa consciência, essa crença na vida além-túmulo para as almas de nossos próximos que morreram, assim como na nossa imortalidade pessoal. Essa crença espalha um raio de luz no trabalho na vida inteira de um Cristão Ortodoxo.
q - Alma e espírito
O princípio espiritual no homem que é oposto ao corpo é designado na Sagrada Escritura por dois termos que são quase iguais em significados: "espírito" e "alma". O uso da palavra "espírito" em lugar de "alma", ou ambos os termos usados com exactamente o mesmo significado é encontrado especialmente no Apóstolo Paulo. Isso é tornado evidente, por exemplo, colocando-se lado a lado os dois textos seguintes: "glorificai pois a Deus no vosso corpo e no vosso espírito, os quais pertencem a Deus" (1 Cor. 6, 20); e "…purifiquemo-nos de toda imundície da carne e do espírito" (2 Cor. 7, 1).
Além dessas, existem duas passagens nos escritos desse Apóstolo onde alma e espírito são mencionados lado a lado, e isso cria a oportunidade de se perguntar: Não estaria o Apóstolo indicando que, além da alma, existe também um "espírito" que é uma parte essencial da natureza humana? Da mesma forma, nos escritos de certos Santos Padres particularmente nos escritos ascéticos, é feita uma distinção entre alma e espírito. A primeira passagem no Apóstolo Paulo é na Epístola aos Hebreus: "Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante do que espada alguma de dois gumes, e penetra até a divisão da alma e do espírito, e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração" (Heb. 4, 12). Outra passagem do mesmo Apóstolo está na Epístola aos Tessalonissensses: "e todo o vosso espírito, e alma e corpo, sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Tess. 5, 23). Não é difícil, no entanto, ver que na primeira passagem o espírito é para ser entendido não como uma substância que é separada e independente da alma, mas só como um lado mais interno e escondido da alma. Aqui a relação da alma e do espírito é feita paralela à relação entre os membros do corpo e cérebro, e assim como o cérebro é a parte interna da natureza corporal, ou é um conteúdo quando comparado com seu conteúdo, assim também o espírito é evidentemente considerado pelo Apóstolo como a parte escondida da alma do homem.
Na segunda passagem por "espírito" é evidentemente significada aquela especial alta harmonia da parte escondida da alma que é formada pela graça do Espírito Santo em um Cristão: o "espírito" no qual o Apóstolo fala em outro lugar: "Não extingais o Espírito" (1 Tess. 5, 19); e "...fervorosos no espírito" (Rom. 12, 11). Assim, o Apóstolo não está pensando aqui em todos os homens em geral, mas só nos Cristãos. Nesse sentido o Apóstolo contrasta o homem "espiritual" com o homem "natural" ou carnal (1 Cor. 2, 14-15). O homem espiritual possui uma alma, mas sendo renascido, ele cultiva em si as sementes da graça; ele cresce e gera frutos no espírito. No entanto, por falta de cuidados com sua vida espiritual ele pode descer ao nível do homem natural ou carnal: "Sois vós tão insensatos que, tendo começado pelo Espírito, acabeis agora pela carne?" (Gal. 3, 3). Por isso, não há terreno para supôr que o pensamento do Apóstolo Paulo não esteja de acordo com o ensinamento que a natureza do homem consiste em duas partes.
Essa mesma do espírito como a mais alta e dada por graça forma de vida da alma humana é evidentemente o que é significado pelos Padres e professores da Igreja nos primeiros séculos que distinguiram no homem um espírito assim como uma alma. Essa distinção é encontrada em São Justino, o Mártir, Tatiano, Irineu, Tertuliano, Clemente de Alexandria, Gregório de Nissa, Efrém o Sírio, e da mesma forma em escritores e ascetas posteriores. Porém, uma maioria significativa dos Padres e professores da Igreja reconhecem directamente que a natureza do homem tem duas partes: corpo e alma (Santos Cirilo de Jerusalém, Basílio o Grande, Gregório o Teólogo, João Crisóstomo, Agostinho, João Damasceno). O Bem-aventurado Teodoreto escreve: "De acordo com o ensinamento de Apolinário (o Herético) existem três partes no homem: o corpo, a alma animal, e a alma racional, que ele chama de mente. Mas a Sagrada Escritura só aceita uma alma, não duas, e isso é claramente indicado pela história da criação do primeiro homem. Deus, tendo formado o corpo do pó e soprado uma alma nele, mostrou que há duas naturezas no homem, e não três".
r - A imagem de Deus no homem
O escritor sagrado do relato da criação do homem diz: "E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a vossa semelhança... E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou" (Gén. 1, 26-27).
No que consiste a imagem de Deus em nós? O ensinamento da Igreja conta-nos somente que no geral o homem foi criado "à imagem", mas precisamente que parte de nossa natureza manifesta nessa imagem não é indicada. Os Padres da Igreja e professores responderam a essa questão de várias maneiras: alguns vêem a imagem na razão, outros no livre arbítrio, e ainda outros na imortalidade. Se juntarmos essas ideias, obtemos uma concepção completa do que a imagem de Deus no homem é, de acordo com o ensinamento dos Santos Padres.
Antes de tudo, a imagem de Deus deve ser vista só na alma, não no corpo. De acordo com a sua natureza, Deus é o mais puro Espírito, não vestido com qualquer tipo de corpo e não participante de qualquer tipo de materialidade. Assim a imagem de Deus só se pode referir à alma imaterial - muitos Padres da Igreja consideraram necessário dar esse alerta.
O homem carrega a imagem de Deus nas mais elevadas qualidades da alma, especialmente na imortalidade dela, no seu livre arbítrio, na sua razão e na sua capacidade de um amor puro sem pensamento de ganho.
a - Deus deu imortalidade à alma do homem, ainda que alma seja imortal não por natureza, mas somente pela bondade de Deus.
b - Deus é completamente livre nas suas acções, e deu aos homens livre arbítrio e a habilidade de agir livremente dentro de certos limites.
c - Deus é sapientíssimo, e deu ao homem a razão que é capaz de não ser limitada às coisas terrenas, necessidades animais e ao lado visível das coisas, mas também o ser capaz de penetrar nas profundezas das coisas, e reconhecer e explicar o seu significado interior. A razão do homem é capaz de subir ao nível daquilo que é invisível e de esforçar-se em pensamento para a verdadeira Fonte de tudo que existe - Deus. A razão do homem torna a sua vontade consciente e autenticamente livre, por que ela pode escolher aquilo que corresponde à mais alta dignidade do homem ao invés daquilo para o quando sua natureza inferior o inclina.
d - Deus criou o homem em sua bondade e nunca deixou nem nunca o deixará sem o seu amor. O homem, recebendo a sua alma do sopro de Deus, esforça-se para a direcção do seu primeiro princípio, Deus, como para a direcção de algo similar a ele, procurando e sentindo sede pela união com ele. Isso é especificadamente mostrado na postura recta e em pé do seu corpo, e o seu olhar, que se volta para o céu. Assim, esse esforço para o amor por Deus expressa a imagem de Deus no homem.
Em resumo, pode dizer-se que todas as qualidades e capacidades boas e nobres da alma são uma expressão da imagem de Deus no homem.
Existe uma distinção entre a "imagem" e a "semelhança" de Deus? A maioria dos Santos Padres e professores da Igreja respondem que existe. Eles vêem a imagem de Deus na natureza da alma, e a semelhança no aperfeiçoamento moral do homem em virtude e santidade, na aquisição dos dons do Espírito Santo. Consequentemente, nós recebemos a imagem de Deus junto com a existência, mas a semelhança nós devemos adquirir de nós mesmos, tendo recebido a possibilidade de fazer isso, de Deus.
Tornar-se "semelhante" depende de nossa vontade; e adquirida conforme nossa própria actividade. Por isso, a respeito do "conselho de Deus" é dito: "Façamos o homem à Nossa imagem, conforme a Nossa semelhança" (Gén. 1, 26). Mas a respeito do acto da criação em si é dito: "Por «conselho» de Deus, foi-nos dado o potencial de ser «à sua semelhança»".
s - O propósito do homem
Tendo elevado o homem acima do mundo terreno, tendo dado a ele a razão e liberdade, tendo-o adornado com a sua própria imagem, o Criador indica assim ao homem o seu especial e alto propósito. Deus e o mundo espiritual estão diante do olhar espiritual do homem; diante do seu olhar corporal está o mundo material.
a - O primeiro propósito do homem é a glória de Deus. O homem é chamado a permanecer fiel à sua ligação com Deus, a esforçar-se para a direcção dele, a reconhecê-lo como o seu Criador, a glorificá-lo, a rejubilar-se em união com Ele, a viver nele. "Ele os encheu de conhecimento e compreensão", diz o mais sábio filho de Sirac com respeito aos dons que Deus deu para o homem. "Ele pôs Seu olho em seus corações para mostrar a eles a majestade de Suas obras" (Sirach 17, 6-10). Pois se toda a criação é chamada, de acordo com as suas habilidades, a glorificar o Criador (como é colocado por exemplo no Salmo 148), então logicamente o homem, como a coroa da criação, é o mais capacitado a ser consciente, racional, constante e o mais perfeito instrumento de Deus na terra.
b - Para esse propósito, o homem deveria ser digno de seu Protótipo. Noutras palavras, ele é chamado a aperfeiçoar-se, a guardar sua semelhança com Deus, a restaurá-la e reforçá-la. Ele é chamado a desenvolver e aperfeiçoar os seus problemas morais por meio de boas obras. Isso requer que o homem tome conta de sua própria bondade, e a sua verdadeira bondade está na bênção de Deus. Por essa razão deve dizer-se que a bênção de Deus é o objectivo da existência de Deus.
c - O Olhar físico e imediato do homem é dirigido para o mundo. O homem foi colocado como a coroa da criação terrena e o rei da natureza, como é mostrado no primeiro capítulo do Livro da Génesis. De que maneira isso deveria ser manifestado? O Metropolita Macário fala isso em sua «Orthodox Dogmatic Theology»: "Como a imagem de Deus, o filho e herdeiro na casa do Pai Celestial, o homem foi colocado como uma espécie de intermediário entre o Criador e a criação terrena: em particular ele foi predeterminado a ser um profeta para essa criação proclamando a vontade de Deus no mundo em palavras e obras; é para ser o sacerdote chefe, de maneira a oferecer um sacrifício em louvor e agradecimento a Deus em nome de todos os nascidos na terra, trazendo assim para a terra as bênçãos dos céus; ele é a cabeça e o rei de modo que concentrando os objectivos de todas as criaturas visíveis existentes em si, ele possa através de si unir todas as coisas com Deus, e assim manter a cadeia toda das criaturas terrenas em uma harmoniosa ligação e ordem".
Assim foi criado o primeiro homem, capaz de atingir o seu propósito e fazer isso livremente, voluntariamente, em júbilo, de acordo com a atracção da sua alma, e não por compulsão. A ideia da posição soberana do homem na terra faz o Salmista louvar o Criador, extasiado: "Ó, Senhor, Senhor nosso, quão admirável é o Teu Nome em toda a terra, pois puseste a Tua glória sobre os céus... Quando vejo os Teus céus, obras dos Teus dedos, a lua e as estrelas que preparaste: Que é o homem mortal para que te lembres dele? E o filho do homem, para que O visites? Contudo, pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra O coroaste. Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das Tuas mãos... Ó Senhor, Senhor nosso, quão admirável é o Teu nome sobre toda a terra!" (Sal. 8, 15).
t - Da criação à majestade do Criador
O Apóstolo instrui: "As suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo... claramente se vêem... tanto o Seu divino poder quanto a Sua divindade" (Rom. 1, 20). Isto é, as coisas invisíveis de Deus são vistas pela contemplação da criação. Em todas as épocas da humanidade, as melhores mentes, reflectindo profundamente sobre o mundo pararam atónitas diante da majestade, harmonia e racionalidade da ordem do mundo, e foram elevadas disso para pensamentos reverentes sobre a bondade, majestade e sabedoria do Criador. São Basílio, o Grande, em suas homílias sobre os seis dias «Hexaemeron», examina as primeiras palavras do Livro do Génesis. "No princípio Deus criou os céus e a terra" - então chama os seus ouvintes: "Glorifiquemos o soberbo artista que criou o mundo com sapiência e habilmente; e da beleza daquilo que é visível, compreendamos aquele que ultrapassa tudo em beleza; da majestade desses corpos sensíveis e limitados tiremos a conclusão em relação a Ele que é sem fim que ultrapassa toda majestade, e na multiplicidade de seus poderes ultrapassa todo entendimento". E então, indo para a segunda homília, como se estivesse em pausa e sem esperança de penetrar mais profundamente nas profundezas da criação, ele profere essas palavras: "Se a entrada do sagrado é assim, e a entrada do templo é tão louvável e majestosa... então o que dizer do Santo dos santos? E quem é digno de entrar no lugar sagrado? Quem dirigirá seu olhar para o que está escondido?"
Arcebispo Primaz Katholikos
S.B. Dom ++ Paulo Jorge de Laureano – Vieira y Saragoça
(Mar Alexander I da Hispânea)
Última actualização deste
Link em 01 de Outubro
de 2011